quinta-feira, 18 de maio de 2017

Aposta Indecente. Matilda Wright. «… as belas moças que trabalhavam em sua casa exibiam as suas formas esculturais dançando ou, simplesmente, conversando em pequenos grupos»

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«(…) Querendo ver tudo e, atrás de um túmulo, com habilidades de contorcionista tornando (…) e debruçando-se sobre a tampa do sepulcro para ser possuída… Helène aos gritos, os dedos cravados nas pregas de pedra de um manto real qualquer, descontrolada. O sacristão, velho e quase surdo, passando por ali e olhando espantado para a aflição daquela moça tão nova. Um antepassado, disse Villeclaire. Está muito comovida... Helène, a louca! Vem!, disse Louis abrindo os olhos, na urgência que as recordações de Helène lhe tinham deixado no corpo.
Monsieur, o conde de Joubert..., repetiu Cléa, e parecia uma menina, pálida, assustada, o pequeno corpo tremendo. Está lá em baixo, ferido, matou um homem... Villeclaire despertou imediatamente do torpor em que a noite com Cléa e as recordações de várias outras noites, muito antes de Cléa, o tinham deixado e saltou da cama, nu. Bertrand de Joubert não era exactamente um amigo e, apesar do título de conde, também não era um verdadeiro cavaleiro, mas era um velho conhecido, um vizinho cujo castelo no Vale do Loire ficava muito próximo do enorme palácio que Louis tinha herdado naquela mesma região. Vestiu-se às pressas, amaldiçoando as inúmeras peças de roupa que um homem elegante era obrigado a usar, e saiu do quarto, ainda atando a fita de seda com que prendia o cabelo, seguido por Cléa, pobre Cléa, em pânico.
Louis de Villeclaire foi um dos últimos clientes de madame Martine a entrar no enorme salão onde os grandes espelhos de molduras douradas reverberavam à luz das centenas de velas que ardiam, envolvendo o ambiente num cálido odor de cera e almíscar. As paredes, ricamente forradas de damasco azul, eram testemunhas mudas das muitas conversas ali mantidas ao longo dos anos. Negócios de Estado, vendas de bancos, nomeações de diplomatas, substituições de ministros, até o início da guerra na Crimeia, dizia-se, tinham sido decididas naquela sala onde Martine recebia os seus selectos clientes e onde, enquanto estes bebiam champanhe e fumavam longos charutos perfumados, as belas moças que trabalhavam em sua casa exibiam as suas formas esculturais dançando ou, simplesmente, conversando em pequenos grupos.
Mas não era nada disso que se passava naquela noite quando Louis desceu do quarto de Cléa e entrou no salão. Bertrand de Joubert jazia num dos canapés forrados de seda azul celeste, e o doutor Moreau, o mais famoso dos médicos de Paris, acabava de lhe colocar uma ligadura no braço direito. Havia na sala uma agitação desusada. Os risinhos das moças tinham sido substituídos por sussurros. Homens circunspectos conversavam em voz baixa. E Martine, mantendo o seu porte de rainha crioula, segurava a mão de Joubert. Vamos, onde se meteu? Por pouco não subi para arrombar a porta do quarto de Cléa. Pierre Forchemont puxava o amigo, a caminho da saída. O que é que aconteceu?, queria saber Villeclaire. Conto-lhe quando estivermos a salvo dentro da minha carruagem. A polícia não tarda a aparecer... E os outros? Marcel, Laurent, Gas... O marquês de Fochemont nem lhe deu tempo para acabar a frase: estão à nossa espera no Gascogne, com ostras e champanhe. Conto-lhe no caminho.
A carruagem que já os esperava na porta atravessou a Rue Saint-Honoré e, logo depois, os cavalos trotavam ao longo da Rue de Rivoli finda a qual depositaria os passageiros junto das magníficas arcadas da Place de Vosges, onde ficava o Gascogne, restaurante frequentado pela alta sociedade parisiense e com fama de ter as melhores ostras da França. Chovia torrencialmente e as grossas gotas de chuva batiam na capota da carruagem fazendo um barulho ensurdecedor, ainda piorado pelo som das ferraduras dos quatro possantes cavalos. Era impossível conversar, fazer perguntas. Por isso, Louis de Villeclaire limitou-se a ouvir o que o seu amigo Pierre de Fochemont contava, aos gritos e entre gargalhadas: uma aposta estúpida! Entre o Joubert e o Duvernois, o velho tabelião da Rue des Archives... Nem entendi bem! Uma confusão qualquer aos dados que acabou numa aposta sobre qual deles era mais rápido disparando uma pistola...
Villeclaire soltou uma gargalhada: dois apostadores inveterados e dois péssimos atiradores! Mas, pelo visto, ambos com a mesma velocidade no gatilho, disse Fochemont. O Joubert foi atingido num braço e a ironia é que, apesar de mau atirador, desta vez acertou no alvo. Matou o Duvernois... Matou? Villeclaire já não ria. Matou, respondeu Fochemont no momento em que a carruagem parava em frente à porta do restaurante. Saíram correndo para chegarem ao abrigo das arcadas antes que a chuva os deixasse encharcados. Onde foi isso? Marcaram encontro para esta noite, no Bois de Bologne. No Bois?, ainda perguntou Louis. No Bois, meu caro! Se é isso que quer saber, trouxeram o Joubert para a casa da Martine porque calcularam que o bom do Moreau lá estaria. Às três da manhã era a melhor maneira de lhe arranjarem rapidamente um médico, Pierre ainda disse, cínico, antes de empurrar a porta de madeira e vidro». In Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011, Editor Livros d’Hoje, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT