Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Talvez, no fundo, eles se ámem bastante, embora isso de amor entre irmãos traga
consigo a quota de exasperação mútua que o costume provoca. Não, não se parecem
comigo. Nem sequer fisicamente. Esteban e Blanca têm os olhos de Isabel. Jaime
herdou dela a testa e a boca. O que Isabel pensaria se pudesse vê-los hoje,
preocupados, activos, maduros? Tenho uma pergunta melhor: o que eu pensaria, se
pudesse ver Isabel hoje? A morte é uma experiência aborrecida; para os outros,
sobretudo para os outros. Eu deveria me sentir orgulhoso por haver ficado viúvo
com três filhos e ter conseguido seguir adiante. Mas não me sinto orgulhoso, e sim
cansado. O orgulho é para quando se tem 20 ou 30 anos. Seguir adiante com os meus
filhos era uma obrigação, o único escape para que a sociedade não me encarasse
e me dedicasse o olhar inexorável que se reserva aos pais desalmados. Não havia
outra solução, e eu segui adiante. Mas tudo sempre foi por demais obrigatório
para que pudesse sentir-me feliz.
Às quatro da tarde, senti-me de
repente insuportavelmente vazio. Tive de pendurar o casaco de lustrina que se
usa no escritório e avisar ao sector de pessoal que precisava passar pelo Banco
República para resolver aquele assunto do capital de giro. Mentira. O que eu não
suportava mais era a parede em frente à minha escrivaninha, a horrível parede ocupada
por aquela enorme folhinha com um Fevereiro dedicado a Goya. O que faz Goya
nessa velha casa importadora de autopeças? Não sei o que teria acontecido, se
eu tivesse permanecido olhando a folhinha como um imbecil. Talvez gritasse, ou
iniciasse uma das minhas costumeiras séries de espirros alérgicos, ou
simplesmente submergisse nas esmeradas páginas do Livro-Razão. Porque já
aprendi que os meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. Às
vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias
e de suas diversas e agravantes pressões. Gosto, no entanto, de me convencer de
que não devo permitir-me explosões, de que devo travá-las radicalmente, sob
pena de perder o meu equilíbrio. Então saio como saí hoje, numa encarniçada
busca do ar livre, do horizonte, de sei lá quantas coisas mais. Bom, às vezes não
chego ao horizonte e me conformo com o acomodar-me à janela de um café e registar
a passagem de algumas pernas bonitas.
Estou
convencido de que, durante o expediente, a cidade é outra. Conheço a Montevidéu
dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que
retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos
crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos
conhecidos. Mas existe a outra cidade, a das frescas moçoilas que no meio da
tarde saem recém-banhadinhas, perfumadas, desdenhosas, optimistas, espirituosas;
a dos filhinhos da mãe que acordam ao meio-dia e às seis da tarde ainda trazem
impecável o colarinho branco de tricolina importada; a dos velhos que tomam o autocarro
até a Aduana e depois retornam sem desembarcar, reduzindo a sua módica farra à
simples mirada reconfortante com que percorrem a Cidade Velha de suas
nostalgias; a das mães jovens que nunca saem de noite e entram no cinema, com
cara de culpadas, por volta das três e meia da tarde; a das amas que difamam as
suas patroas enquanto as moscas devoram as crianças; a dos aposentados e ociosos
vários, enfim, que crêem ganhar o céu jogando migalhas aos pombos da praça». In
Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.
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