Cortesia
de wikipedia e jdact
«Só me faltam seis meses e 28
dias para estar em condições de me aposentar. Deve fazer pelo menos cinco anos
que mantenho este cômputo diário do meu saldo de trabalho. Na verdade, preciso
tanto assim do ócio? Digo a mim mesmo que não, que não é do ócio que preciso,
mas do direito a trabalhar no que eu quiser. Por exemplo? Jardinagem, quem
sabe. É bom como descanso activo para os domingos, para contrabalançar a vida sedentária
e também como defesa secreta contra a minha futura e garantida artrite. Mas temo
não conseguir aguentar isso diariamente. Violão, outra hipótese. Acho que me agradaria.
Mas começar a estudar solfejo aos 49 anos deve ser meio desolador. Escrever? Talvez
não o fizesse mal; pelo menos, as pessoas costumam gostar das minhas cartas. E depois?
Imagino uma notinha bibliográfica sobre as notáveis qualidades deste autor estreante
que beira os 50, e a mera possibilidade me causa repugnância. Que eu me sinta,
até hoje, ingénuo e imaturo (isto é, só com os defeitos da juventude e quase
nenhuma das suas virtudes) não significa que tenha o direito de exibir essa
ingenuidade e essa imaturidade.
Tive uma prima solteirona que,
quando preparava uma sobremesa, insistia em mostrá-la a todos, com um sorriso
melancólico e pueril que lhe havia ficado preso aos lábios
desde a época em que se exibia para o namorado motociclista, o qual depois se
matou numa de nossas tantas Curvas da Morte. Ela se vestia de maneira correcta,
inteiramente de acordo com seus 53; nisso, e no resto, era discreta,
equilibrada, mas aquele sorriso reclamava um acompanhamento de lábios frescos,
de pele roçagante, de pernas torneadas, de 20 anos. Era um gesto patético, só
isso, um gesto que não chegava nunca a parecer ridículo, porque naquele rosto
havia também bondade. Quantas palavras, só para dizer que não quero parecer patético.
Para render passavelmente no escritório, preciso obrigar-me a não pensar que o ócio
está relativamente próximo. Do contrário, meus dedos se crispam e a letra
redonda com a qual devo escrever os itens me sai quebrada e deselegante. A
letra redonda é um dos meus maiores prestígios como empregado. Além disso, devo
confessar que me dá prazer o traçado de algumas letras como o M maiúsculo ou o b
minúsculo, nas quais me permiti algumas inovações. O que eu menos odeio é a parte
mecânica, rotineira, do meu trabalho: repassar um lançamento que já redigi
milhares de vezes, efectuar um balanço de saldos e constatar que tudo está em
ordem, que não há diferenças a buscar.
Esse tipo de tarefa não me cansa,
porque me permite pensar em outras coisas e até (por que não dizer a mim
mesmo?) também sonhar. É como se eu me dividisse em dois entes díspares, contraditórios,
independentes, um que sabe de cor o seu trabalho, que domina ao máximo as
variantes e os meandros dele, que está sempre seguro de onde pisa, e outro
sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no
entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria, um distraído a quem não
importa por onde corre a pena nem que coisas escreve a tinta azul que em oito
meses ficará negra.
No
meu trabalho, o insuportável não é a rotina; é o problema novo, o pedido
repentino dessa directoria fantasmal que se esconde por trás de actas, disposições
e gratificações de fim de ano, a urgência com que se reclama um informe ou um
balancete analítico ou uma previsão de recursos. Então, sim, como se trata de
algo mais do que rotina, as minhas duas metades devem trabalhar para a mesma
coisa, eu já não posso pensar no que quiser, e a fadiga instala-se nas minhas
costas e na nuca, como um emplastro poroso. Que me importa o lucro provável do
item Pernos de Pistão no segundo semestre do penúltimo exercício? Que me
importa o modo mais prático de conseguir a redução das Despesas Gerais? Hoje
foi um dia feliz; só rotina. Nenhum dos meus filhos se parece comigo. Em
primeiro lugar, todos têm mais energias do que eu, parecem sempre mais
decididos, não estão acostumados a duvidar. Esteban é o mais arredio. Ainda não
sei a quem se dirige o seu ressentimento, mas o certo é que ele parece um
ressentido. Creio que tem respeito por mim, mas nunca se sabe. Jaime, talvez seja
o meu preferido, embora quase nunca possamos nos entender. Ele me parece sensível,
me parece inteligente, mas não me parece fundamentalmente honesto. É evidente
que existe uma barreira entre nós dois. Às vezes acho que ele me odeia, às
vezes que me admira. Blanca, pelo menos, tem algo em comum comigo: também é uma
triste com vocação de alegre. Quanto ao resto, é por demais ciosa de sua vida
própria, impermutável, para compartilhar comigo os seus mais árduos problemas. É
quem fica mais tempo em casa, e talvez se sinta um pouco escrava da nossa
desordem, das nossas dietas, da nossa roupa suja. As suas relações com os irmãos
às vezes chegam à beira da histeria, mas ela sabe dominar-se e, mais ainda,
sabe dominá-los». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN
978-989-623-048-7.
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de ECdeFerro/JDACT