Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Deixei-o falar. Não fiz
falsas promessas de conversão. Se as tivesse feito, talvez desse mais paz a
ele, mas não pude fazê-lo, não pude mentir a respeito disso. Consegui dizer
gentilmente que, apesar de não concordar mais com o islão, eu ainda lia o Alcorão.
Não acrescentei que a cada releitura eu me tornava mais crítica em relação às
suas mensagens. Ele irrompeu numa série de súplicas: que Alá a proteja, que Ele
a traga de volta para o rumo correcto, que Ele a leve ao Paraíso no além, que
Alá a abençoe e preserve sua saúde. Ao fim de cada súplica, respondi com a fórmula
exigida: amin, que assim
seja.
Depois de algum tempo disse a meu
pai de que precisava tomar um avião. Ele não perguntou para onde nem por quê;
percebi que os detalhes dos assuntos terrenos tinham pouca importância para ele
agora. Então desliguei, deixando entre nós muitas outras coisas por dizer, e
quase perdi o avião que me levaria ao Brasil para uma conferência sobre
multiculturalismo. No fim de Junho, após a conferência no Brasil, eu deveria ir
até à Austrália para participar de um colóquio sobre o Iluminismo. Planeei
visitar o meu pai no fim do verão. Mas em meados de Agosto, quando estava
voltando da Austrália, recebi outro telefonema de Marco durante uma paragem em
Los Angeles. Meu pai estava em coma. Telefonei novamente para a minha prima,
Magool, e ela me deu o número de telemóvel da minha meia-irmã, Sahra. Quando
vira a filha mais nova do meu pai pela última vez, em 1992, Sahra estava com
oito ou nove anos, uma criança franzina e energética. Conhecemo-nos quando
parei na Etiópia durante a viagem da minha casa, no Quénia, até à Alemanha.
De lá, sob as ordens do meu pai,
eu deveria ir ao Canadá para me unir a um homem que mal conhecia, um primo distante
que se havia tornado meu marido. Naquela época, Sahra morava em Adis Abeba com a
mãe, que, como a minha própria mãe, ainda estava casada com meu pai apesar da
sua ausência. Brinquei com esta meia-irmã durante toda a tarde, esforçando-me
para lembrar o amárico da minha infância, o único idioma falado por ela
na época e a língua que eu mesma falava quando tinha essa idade e ainda morava
com meu pai.
Agora, no Verão de 2008, Sahra
tinha 24 anos. Estava casada e tinha uma filha de quatro meses. Morava com a mãe,
a terceira esposa do meu pai. Não contei a Sahra que pretendia visitar o meu
pai no hospital. É horrível escrever algo deste tipo, mas a verdade é que eu não
sabia se poderia confiar nela e dividir essa informação. Acredito que os
membros mais próximos da minha família não desejam realmente matar-me, mas a
verdade é que eu os envergonhei e magoei; eles têm de suportar a indignação
causada pelas minhas declarações públicas, e sem dúvida alguns membros do meu
clã querem matar-me por causa disso.
Mas Sahra adiantou-se e sugeriu
que se eu quisesse visitar abeh
seria melhor evitar o horário oficial de visitas, quando multidões de
somalis procurariam o meu pai no Royal London Hospital em busca de uma bênção
dele que melhorasse as suas chances de chegar ao Paraíso. Para muitos, abeh era um símbolo da
luta contra o regime militar do presidente Siad Barre; ele era um homem que
dedicou a maior parte de sua vida adulta à tentativa de derrubar aquele regime.
No East End de Londres, as coisas eram como na Somália: muitas esposas, muitos filhos
e netos, anciãos do clã e do subclã e dos subclãs irmãos, muitos e muitos
parentes procuravam meu pai para manifestar o seu respeito por ele. Para muitos
deles eu não seria bem-vinda ao lado da cama do meu pai por ser uma descrente,
uma infiel, uma ateia declarada, uma fugitiva suja e, ainda pior, uma traidora
do clã e da fé.
Alguns
deles com certeza achariam que eu merecia a morte, e para muitos mais a minha
simples presença seria uma profanação do leito de morte do meu pai, podendo até
custar a ele o seu lugar no além. Entretanto, não senti em Sahra tamanha rejeição.
Ela foi doce e silenciosa, um pouco como se participasse de uma conspiração,
como se ao conversar com ela pelo telefone eu a tivesse envolvido em algo
clandestino e perigoso». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America,
Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011,
ISBN 978-848-109-928-7.
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