Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Século das Mulheres
«O
século XVI foi o século das mulheres.
A semente que Christine Pisan semeara cem anos antes florescia por toda a
Europa com o doce perfume de O ditado dos
verdadeiros amantes. Não
foi de modo algum casual que o descobrimento de Mateo Colombo tenha eclodido no
tempo e no espaço em que se deu. Até ao século XVI, a História era narrada pela
grave voz masculina. Onde quer que se olhe, lá está ela com a sua infinita
presença: do século XVI ao XVIII, na cena doméstica, económica, intelectual,
pública, conflitual e até mesmo lúdica da sociedade, encontramos a mulher. Em
geral, solicitada pelas suas tarefas quotidianas. Mas também presente nos
acontecimentos que constituem, transformam ou
dilaceram a sociedade. De cima a baixo da escala social, ela ocupa o conjunto
dos espaços, e sobre a sua presença falam constantemente aqueles que a
contemplam, amiúde para assustar-se, declaram Natalie Zemón e Arlette Farge em História das mulheres. O descobrimento de
Mateo Colombo surge, precisamente, quando os âmbitos das mulheres, sempre da
porta para dentro, começam, pouco a pouco e subtilmente, a sair dos muros dos
beatérios e dos mosteiros, dos prostíbulos ou da tépida, mas não menos monástica,
doçura do lar. A mulher, timidamente, atreve-se a discutir com o homem. Com
algum exagero, chegou-se a dizer que no século XVI foi travada a Batalha dos
sexos. Verdade ou não, a questão das incumbências das mulheres instala-se
como um tema de discussão entre os homens.
Em tais circunstâncias, o que era a América
de Mateo Colombo? Certamente, o limite entre a descoberta e a invenção é muito
mais difuso do que parece à primeira vista. Mateo Colombo, é hora de dizer,
descobriu aquilo com que todo homem sonhou alguma vez: a chave mágica que abre
o coração
das mulheres, o segredo que governa a misteriosa vontade do amor feminino.
Aquilo que, desde o começo da História, foi buscado por bruxos e feiticeiras,
xamãs e alquimistas, mediante a infusão de toda sorte de ervas ou o favor de
deuses e demônios, aquilo, enfim, que todo homem apaixonado sempre ansiou,
ferido pelo desamor do objecto de seus desvelos e de sua desdita. E também,
aliás, aquilo com que monarcas e governantes sonharam, pela mera ambição da omnipotência:
o instrumento que subjugasse a volátil vontade feminina. Mateo Colombo buscou,
peregrinou e, finalmente, encontrou a sua doce terra desejada: o órgão que
governa o amor nas mulheres. O Amor Veneris tal é o nome com que o anatomista o baptizou, se
me é permissível dar nomes às coisas por mim descobertas, constituía um
verdadeiro instrumento de potestade sobre o escorregadio, e sempre obscuro,
arbítrio feminino. Por certo, tal achado apresentava mais de uma aresta: com
que calamidades a cristandade não se veria confrontada se as hostes do demónio
se apoderassem do feminino objecto do pecado?, perguntavam-se, escandalizados,
os Doutores da Igreja. O que seria do rentável negócio da prostituição
se qualquer pobre entrevado pudesse ganhar o amor da mais cara das cortesãs?,
perguntavam-se os ricos proprietários dos esplêndidos lupanares de Veneza. Ou,
ainda pior, o que aconteceria se as filhas de Eva descobrissem que trazem no
meio das pernas as chaves do céu e do inferno?
O descobrimento da América de
Mateo Colombo foi também, e na sua medida, uma épica, cortada pela ladainha de
um réquiem. Mateo Colombo foi tão feroz e impiedoso quanto Cristóvão; como
aquele, e com a mesma literal propriedade, foi um colonizador brutal que reclamava para si mesmo o direito sobre
as terras descobertas: o corpo da mulher. Por outro lado, porém, para além do
que significava
o Amor Veneris, outra
polémica seria suscitada pelo que era esse órgão. Existirá o órgão que Mateo
Colombo descreveu? Essa é uma pergunta inútil que deveria, em todo caso, ser
substituída por outra: existiu o Amor Veneris?
As coisas
são, ao fim e ao cabo, as vozes que as
nomeiam. Amor
Veneris, vel Dulcedo Apelete, nome com que o seu descobridor baptizou
o órgão, tinha um conteúdo fortemente herético. Se o Amor Veneris coincide com o menos apóstata e mais neutro kleitoris (comichão), que alude a efeitos antes que a
causas—, é um assunto que haverá de preocupar os historiadores do corpo. O Amor Veneris existiu por razões diferentes das razões
da anatomia; existiu não só porque fundou uma nova mulher, mas porque, além disso,
promoveu uma tragédia. O que vem a seguir é a história de um descobrimento».
In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998, ISBN 978-972-232-362-8.
Cortesia de EPresença/JDACT