sexta-feira, 19 de maio de 2017

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «Determinou ter uma ocupação, um ofício, exercer um trabalho qualquer, mas bem depressa adquiriu a desoladora certeza de que a sua fraqueza física o tornava incapaz…»

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«(…) Os próprios mestres tinham de fazer esforço para se não rirem quando o viam. Na hora do recreio tomou-se a vítima, o bode expiatório do colégio. Um dia, porém, a brincadeira atingiu tais proporções que degenerou em perversa brutalidade. Tadeu caiu no chão extenuado a lançar sangue pelo nariz. Do grupo estupefacto e arrependido dos colegiais destacou-se então um, o mais velho, o mais valente o que nunca entrava naquelas farsadas brutais, e disse com voz decidida: tomo esse pobre diabo debaixo da minha protecção. O primeiro que lhe tocar tem os ossos num feixe. Ninguém se atreveu a responder uma palavra. Henrique Souza era temido e respeitado. Nas aulas era o primeiro; nas brincadeiras era o mais forte; na luta era o mais destemido. Órfão de pai, era sustentado no colégio pelo trabalho insano da mãe e da irmã mais velha que se tinham feito costureiras para o poderem educar. Henrique fizera-se homem antes de tempo. O seu pensamento fixo era poder pagar a dívida sagrada que contraíra com as duas heróicas e dedicadas mulheres. Quando Tadeu despertou do desmaio em que a fraqueza o mergulhara, fixou os seus tristes olhos esgazeados e humildes na fisionomia meiga e viril de Henrique. Compreendeu que tinha achada um amigo e caiu-lhe nos braços a soluçar.
Tadeu conservara-se cinco anos no colégio, e saíra de lá um pouco mais forte e um pouco menos desgraçado. Henrique, que há três anos tinha completado a sua educação, e que agora cursava a escola de medicina, nunca deixara de o ir visitar de tempos a tempos, levando-o muitas vezes por ocasião das férias a passar o dia em casa da sua mãe. O jovem estudante de medicina dava lições de francês e inglês nas horas vagas, para aumentar os minguados recursos da família e como um tio que morrera lhe tivesse deixado uma pequena pensão, viviam agora todos três mais desafogadamente.
Ocupavam uma casa pequenina mas muito bonita e quase nova; tinham um quintal com três galinhas, um casal de pombos e um canteirinho semeado de flores. O trabalho da casa era a mãe de Henrique quem o fazia; a irmã costurava e bordava para fora, o irmão vivia de estudar e de esperar. Muito unidos, muito resignados; em certos momentos mesmo, muito alegres, de uma alegria serena e doce, a alegria dos corações honrados que confiam na providência de Deus! Henrique era formoso sem dar por isso. O único modo possível de um homem ser formoso. Joaninha, a irmã, que já fizera vinte e sete anos, era uma doce e casta fisionomia de virgem que tem padecido muito. Nos seus grandes olhos melancólicos havia a tranquila doçura dos que repousam depois de uma luta esmagadora. Tinha a certeza de que havia na terra alegrias que nunca seriam dela, e no entretanto não se revoltara; pusera noutro ponto mais alto a sua mira.
Descobrira a sua individualidade, vivia da vida e das esperanças do seu irmão. Neste interior recolhido e casto, Tadeu sentiu pela primeira vez acordar a consciência. Sofria muito ali pelas comparações dolorosas que fazia, mas compreendeu que nesse mesmo sofrimento havia um progresso do seu espirito e afeiçoou-se às torturas que ele lhe dava. O trabalho era a lei daquela casa, e Tadeu não sabia trabalhar. Ali concebia-se a vida de um modo elevado e justo, a dignidade do homem estava identificada com a sua independência, e Tadeu não passava de um parasita. Aprendeu na convivência de Henrique e da sua mãe e irmã muito mais do que aprendera em todos os anos da sua desconsolada existência.
Determinou ter uma ocupação, um ofício, exercer um trabalho qualquer, mas bem depressa adquiriu a desoladora certeza de que a sua fraqueza física o tornava incapaz de qualquer esforço aturado e violento. Com vinte e três anos conseguira tão-somente, por fim de porfiada luta, ser uma espécie de caixeiro de guarda-livros do seu tio. Aprendeu a fazer bem contas, e tornou-se útil naquela desordenada administração de uma casa colossal. Isto não era de certo coisa que satisfizesse as ambições de outro qualquer, mas para ele isto já era uma grande, uma sublime conquista». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT