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Para medir o significado histórico deste contraste, podemos comparar o que se
passa em Portugal com o que acontece em Castela durante o século XIII. Por
volta da década de 1280, época de redacção da nossa Primeira Crónica,
Afonso X e os seus colaboradores tinham já acumulado centenas de páginas da sua
Primera Crónica General, e entregavam-se já à tarefa da sua revisão crítica.
Antes deles já Lucas Tuy e Rodrigo Ximénez Rada tinham escrito em latim as suas
histórias da Hispânia, dando mostras, sobretudo o segundo, de uma impressionante
maturidade na produção de um discurso historiográfico coerente, no relato dos
feitos dos reis e na formulação de uma memória colectiva. Estes textos eram
muito provavelmente conhecidos na corte portuguesa, uma vez que a rainha dona
Beatriz era filha predilecta de Afonso X. Comparada com eles, a Primeira
Crónica Portuguesa é de uma evidente rudeza. Se teve uma primeira redacção
pelos anos 80, parece pouco mais do que o esboço de uma narrativa compósita e
mal cerzida a que se juntam dados de vária ordem artificialmente inseridos no
texto. Só a personagem de Afonso Henriques adquire alguma consistência, mas
como um caudilho irrequieto e colérico, não tanto como chefe militar
conquistador de vastos territórios ou como detentor de um poder acima de qualquer
outro, e muito menos como fundador de uma nação.
Ora
o primeiro cronista português escreve quase cem anos depois do cónego regrante
de Coimbra autor dos Anais, ter produzido um texto curto, mas coerente,
e de grande unidade, que apresenta uma visão carismática do primeiro rei de
Portugal, fazendo dele o instrumento de Deus para destruição dos inimigos da
fé. Ignora por completo o seu predecessor e, em vez do exaltar o rei e o
conquistador do território retrata-o como um quase matricida e como um herói
marcado pela maldição. Não se esforça por dar relevo às suas conquistas nem ao
seu talento militar. A batalha de Ourique não lhe merece nenhuma atenção
especial. Do reinado de Sancho I só lhe interessa o nome da mulher, dos
numerosos filhos legítimos e ilegítimos e dos seus casamentos e lugares de
sepultura. As guerras com Leão e os infortúnios do fim do século XII nada
deixam na crónica. O mesmo se diga de Afonso II, transformado em conquistador
de Alcácer do Sal, mas ignorado enquanto verdadeiro rei; ou melhor identificado
como bom cristão no começo e na cima peor, o que quer dizer que a corte
guardou a memória da contestação que sofreu por parte dos sectores senhoriais,
mas não dos seus notáveis esforços de fortalecimento da coroa. Para voltar a
encontrar alguma coisa que se pareça com uma verdadeira crónica dos reis de
Portugal, é preciso chegar ao reinado de Sancho II, onde aparece um relato
objectivo mas esquelético da intervenção papal para entregar o trono a seu
irmão Afonso III, e assim afirmar que foi legítimo sucessor da coroa.
E a
partir daqui? Se cronista havia na corte, porque nada registou do reinado de
Afonso III nem sequer como apêndice? Se os elementos identificados por
Filipe Moreira como acrescentos o foram de facto (e não apenas elementos
autónomos que escribas não credenciados foram apontando ou juntando à Primeira
Crónica), temos de concluir que Afonso III não se interessou pelo relato dos
seus próprios feitos, como digno sucessor de seus pais e avós, nem sequer para
registar a conquista definitiva do Algarve ou o seu casamento com a filha de
Afonso X, ou a sua habilidade para evitar conflitos com o sogro. E
que dizer de Dinis I, o rei poeta, o fundador da Universidade Portuguesa? Nada
fez para que os vindouros soubessem que lhe deviam o traçado definitivo das
fronteiras do reino, a dispendiosa edificação dos castelos com que guarneceu a
fronteira, as triunfantes incursões militares em território leonês, o
prestigiado papel como árbitro das desavenças e acordos entre os reis de Castela
e de Aragão, a pacificação dos conflitos com a Santa Sé?
Não
exageremos, pois, o valor da Primeira Crónica Portuguesa, como testemunho da
ideologia régia. Pode ser que Afonso III, no princípio do seu reinado, tivesse
encomendado um texto sobre a legitimidade do seu poder. O que ficou na Crónica
não tem mais de 20 linhas e é apenas um relato descarnado. O rei pode ter
admirado a monumentalidade da obra historiográfica de seu sogro. Mas não há
nenhum indício de que ele ou, sequer, seu filho Dinis percebessem o interesse
que, para si próprios e seus sucessores, teria a criação de uma narrativa
memorialistica das acções régias que serviria de justificação intelectual da
sua autoridade sobre o país que governavam, que postulasse a permanência do
poder político e a sua ligação à colectividade nacional.
A
menos que se venha a descobrir alguma crónica até agora inteiramente
desconhecida, temos de procurar os vestígios da tradição ideológica da
monarquia (na linha dos Anais de Santa Cruz) nas obras do conde Pedro, bastardo
do rei Dinis I, não só através das informações que dá acerca dos reis
portugueses depois de Afonso III, sobretudo acerca dos reis seu pai e seu
meio-irmão, mas também nas alterações textuais aos materiais que usou na
Crónica de 1344. Parecem-me especialmente significativos estes últimos. Assim
acontece no diálogo de Afonso Henriques com o legado papal, quando o rei, na
versão do conde de Barcelos, o mostra a despir-se para lhe mostrar as feridas
que tinha recebido nas suas lutas com os mouros e que lhe davam o direito de
desprezar a autoridade papal; ou na referência aos cinco reis mouros vencidos
em Ourique e na explicação da forma do escudo real com os cinco escudetes em
memória dos reis vencidos (ampliando assim um dado que se encontra em embrião
na IV Crónica Breve mas não consta da Primeira Crónica Portuguesa).
Ora
estes elementos têm, de facto, um forte sentido ideológico. O seu aparecimento
tardio significa que a memória histórica acerca dos reis portugueses foi, até
meados do século XIV, pouco consistente. Foi,
afinal, mais e melhor cultivada por um autor que, embora bastardo de rei, se distancia claramente da corte régia,
combate com todo o vigor a restrição das prerrogativas senhoriais e a
centralização monárquica, e defende o princípio de que o rei tem o dever moral
de compensar a participação das linhagens na conquista do território, e
portanto na independência de Portugal. Interpreto estes factos como indícios de
que a ideologia régia foi, inicialmente, cultivada apenas por alguns elementos
cultos de um clero mais motivado pela luta contra o Islão do que pela
construção de um poder monárquico forte e independente, e que o seu
desenvolvimento tardio se deve à existência de uma vigorosa resistência
senhorial que os reis Afonso II, Afonso III e Dinis souberam dominar mais por
processos administrativos e burocráticos do que por processos intelectuais. Os
letrados de que se serviram foram mais legistas e notários do que pensadores,
filósofos, teólogos ou cronistas». In José Mattoso, A Primeira Crónica
Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN 1646-740X.
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