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de wikipedia e jdact
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Perante este texto, em que a doação ao Hospital de Évora parece com tanto
relevo, torna-se evidente a necessidade de admitir como hipótese de autoria
algum clérigo da corte régia ligado a Évora (porventura algum clérigo da Ordem
de Avis) por qualquer relação desconhecida. A crítica interna sugere, até, que
seja esta a alternativa mais verosímil, pois nenhuma das outras hipóteses se
apoia numa informação tão pormenorizada e concreta como esta. A única objecção
que me ocorre é o facto de não se conhecerem testemunhos evidentes de uma
produção literária por parte das ordens militares. Esta reserva, todavia,
parece-me dever tomar-se mais com preconceito do que como argumento.
Na
verdade, esquece a existência de textos que registam de forma narrativa os
feitos de várias personagens e acontecimentos biográficos, como as lápides das
Ordem do Templo mandadas fazer por Gualdim Pais, a inscrição funerária de frei
Afonso Peres Farinha, da Ordem do Hospital, a de frei Estêvão Vasques Pimentel
também do Hospital, a tradição acerca da batalha de Ourique consignada no
relatório sobre os bens da Ordem de Santiago de 1317-1319, e, obviamente, a
Crónica de Paio Peres Correia também da Ordem de Santiago. E ainda, por outro
lado, a existência de uma tradução portuguesa do Livro de José Arimateia por frei
João Vivas um clérigo da Ordem de Santiago provavelmente ligado ao mosteiro das
cónegas de Santos, em Lisboa.
Trata-se,
é verdade, de um terreno muito pouco conhecido, mas que merece a pena explorar.
Repare-se, desde já, que as ordens militares apoiaram o conde de Bolonha e
não Sancho II durante a guerra civil de 1245. Convém finalmente, não
esquecer, embora, que eu saiba, sem relação com as ordens militares, o
discurso que João Simão fez em Santarém em 1305 para justificar a recuperação
das lezírias por parte do monarca Dinis com algumas referência aos reis
anteriores. É um dos poucos testemunhos da formulação de uma ideologia
régia anterior aos textos do conde Pedro. Tudo o que até aqui procurei expor
confirma, no essencial, a tese de Filipe Moreira. A IV Crónica Breve preserva o
essencial do texto uma Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal, como lhe
chamou Diego Catalán, e a que também se pode chamar, com razão, Primeira
Crónica Portuguesa. Redigida a partir de várias narrativas anteriores (que
me parece deverem ser distinguidas entre si para melhor poder averiguar a
origem e o sentido de cada uma delas, no que discordo de Filipe Moreira), tem
de ser anterior a 1282-1284 por datar destes anos o mais antigo dos seus
testemunhos, a Crónica de Veinte Reyes. Constitui, portanto, o mais antigo
produto narrativo em prosa da literatura portuguesa. Tendo sido redigido na
corte régia por um letrado que procura demonstrar a legitimidade da coroa de
Afonso III como sucessor de Sancho II, trata-se também de um texto marcado pela
ideologia régia. Tenho, neste ponto, de admitir uma correcção importante ao que
escrevi há quase vinte e cinco anos em Identificação de um País. Com efeito
pensava então que a IV Crónica Breve era um texto de origem senhorial recolhido
por Pedro de Barcelos em ordem à redacção do seu Livro de Linhagens e da
Crónica Geral de 1344. O corolário que dessa opinião
tirava era a inexistência de uma formulação da ideologia régia inspirada pela
História. Filipe Moreira demonstra, pois, o contrário.
Atenua-se,
assim, a anomalia manifestada pelo contraste entre uma prática de centralização
administrativa do poder régio singularmente precoce (adoptada por Afonso II)
por comparação com a época em que outras monarquias europeias começaram a
segui-la, e a ausência total ou parcial de justificações ou juízos de valor
acerca dos direitos e prerrogativas da autoridade régia do ponto de vista
político. Atenua-se, mas não desaparece. Esperar-se-ia, na verdade, que os feitos
de Afonso II, Afonso III e Dinis I, tão precoces (no primeiro caso), e tão
eficazes (nos outros dois) no cerceamento dos direitos senhoriais e na
domesticação de uma nobreza concorrencial, e, além disso, tão bem sucedidos na
progressiva redução das autonomias concelhias, inspirassem a criação de uma
memória favorável à exaltação da figura régia. Tanto assim que a obra
portuguesa que mais se aproxima desta Primeira Crónica pelo motivo e pela
matéria, são os Anais de don Afonso, redigidos em Santa Cruz de Coimbra, cujo
prólogo exalta de tal modo a sua figura que o torna um verdadeiro instrumento
de Deus. Nesse sentido, o protagonista dos Anais é um verdadeiro rei fundador.
Mas o da Crónica é apenas um herói». In José Mattoso, A Primeira
Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN
1646-740X.
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