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«(…) Carolina recuava, humilhada e cheia
de vergonha. E, sem uma palavra deitava a correr para a mansarda, subia a
escada sem parar, fechava-se por dentro, e atirando-se para cima do leito
desatava a soluçar sem remédio a desconsolação daquela vida, que flutuava sem
linha de conduta. O candeeiro apagava-se no alongamento da noite. Das torres da
Estrela uma badalada caía sobre a cidade adormecida, a vibração enorme
alongava-se num círculo infinito... E, no silêncio da mansarda, Carolina abria
os olhos com um terror em que dançavam fantasmas sardónicos com a cara do
aprendiz. Era a tarde da nossa Senhora dos Prazeres. O tempo serenara, o céu
não tinha nuvens e no azul espiritualizado os voos brancos dos pombos davam uma
inocência casta ao ambiente. Havia arraial nessa tarde. A procissão, saída da
igreja de Santos, por entre farrapos de bandeiras e verdores de buxo, devia
entrar na capela do cemitério, à noitinha, no meio de foguetes e aromas do
peixe frito, cuidadosamente consumido pela fome do povoléu curioso. Na esplanada que vai terminar à porta
dos Prazeres, as pequenas barracas de lona enchiam-se de grupos; filhas de
saias engomadas, olheiras fundas, com fadistas de calças esticadas sobre
alpargatas de linho. As mulheres gordas, lenço vermelho, os grossos braços nus,
refogavam mexilhão, vermelhas de calor; em torno os soldados passavam, de
chibata, rostos vulgares e bestiais, dilatados em risos enormes; e,
abanando-se, diziam brutezas às pequenas ovarinas sujas. Na confusão dos grupos
os garotos sujos, vivamente alegres, corriam relanceando olhares famintos sobre
os bolos secos das vendedeiras ambulantes, e de passagem pediam cinco réis.
Aqui e além viam-se sobre a relva, petiscando, famílias de operários, pequenas
louras e limpas, tipos de costureiras futuras, traços finos, cismadores e
delicados. Os vadios esqueléticos, de calções em frangalhos, apregoavam água.
No ar os ruídos multíplices abafavam-se
uns aos outros, e das contínuas pulsações resultantes elevava-se um ruído
uniforme e indistinto, como de ebulição longínqua. Os municipais da patrulha
iam atravessando devagar, nos seus cavalos negros, e os capacetes esguios, de
cuja crista jorrava a branca cabeleira dos penachos de linho, salpicavam de
originalidade e paisagem. Eram um enlevo. As criadas olhavam-nos suspirando. O
ruído crescia. O sol mergulhava com uma pompa escarlate no silêncio do rio, e o
poente inflamado era de uma amplidão sem balizas. Dentro do cemitério o mesmo
movimento de quem ia e vinha. Pessoas abastecidas de carnes, esposas espessas
de oleiros, capelistas de chapelinho, laços escandalosos e sombrinha, liam,
soletrando, as inscrições tumulares. Admirava-se o mármore, as fachadas. Os
pequenos, vagarosos, colhiam alfazema e sardinheiras. Alguns olhavam através
das rótulas, o interior dos jazigos, a ver quem tinha berloques de contas e
figuras bordadas de lã em molduras ricas. Alguns ferreiros de mãos calosas
descansavam na borda dos pedestais, tasquinhando as suas merendas; muitos
bebiam pelas garrafas, fazendo saúde aos compadres. E todo o mundo ria à sua
pândega, a fazer arraial com grossas piadas cruas de taberna e de oficina.
As
mulheres, de vestidos de merino, com folhos, mantas de lã com borlas caídas
atrás, xaile bem dobrado no braço, olhavam pasmadas. Os fragmentos das
palestras, apanhados de passagem, eram os mais originais e contrastantes.
Veteranos procuravam o túmulo do conde das Antas. Explicavam os emblemas, a atitude
fera da estátua. Portugal velho!, comentavam. Ele e o Saldanha!... E
familiares, um clarão purpúreo na face: O nosso velho!, diziam. No dezanove de
Maio... E outros queriam ver o túmulo do Palmela. Uma velha de Aveiro ouvira
dizer na terra que era obra famosa. Alguém explicava as riquezas do duque, as
suas quintas, dois contos diários de rendimento; a duquesa era bonita, e um
pouco gorda; ele tinha sido da Marinha. De resto, boas pessoas e fidalgos da
gema; pela Semana Santa pediam na Sé para os pobres e sustentavam asilos. E iam
semeando o chão de espinhas de peixe, de cascas de laranja, e os ares de
rumores de palestra. Mas estrondeavam foguetes». In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras
Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN
978-972-370-963-6.
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