Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) O peregrino voltou para onde estava a menina e sorriu. Era
bonita, quase moça, com as curvas e saliências que o faziam se lembrar das
outras. Mas recebera ordens para fazer um serviço rápido e limpo. Não podia
deixar o homem vivo e tinha de sair dali o mais depressa possível. Pegou-a no
colo e quase não resistiu. Pensou em levá-la para o meio da mata onde não seria
visto. Mas, e se ela gritasse? Alguém poderia ter ouvido o barulho do burrico.
Pensou no rigor da pena aplicada àqueles que não obedeciam às ordens e pegou-a
por baixo dos braços, perto dos ombros. Colocou-a entre os joelhos, apertando-a
para que não se movesse. Ainda hesitava, quando, naquele instante ela abriu os
olhos que se dilataram apavorados e ia gritar, mas, ele agiu rápido. Com a duas
mãos enormes e calosas apertou a cabeça da menina perto das orelhas e num
movimento brusco, da esquerda para a direita, quebrou-lhe o pescoço. Estava
tenso como um animal feroz encurralado e levantou-se com um grunhido. Suspendeu-a
nos braços e, soltando um urro quase igual ao do burrico, como se assim
enganasse os instintos bestiais que não pudera satisfazer, lançou o pequeno
corpo no precipício, para que acompanhasse o pai. Embrenhou-se na mata e
desapareceu.
Sentado numa pedra, no mirante da Virgem do Horizonte, no
alto dos Pirenéus, Maurício contemplava a paisagem que se estendia ao longe.
Sinais luminosos nos picos das montanhas reflectiam a luz do sol nas faces
lisas das pedras. Seu olhar descia até às montanhas que o acompanharam desde lá
debaixo e que agora escondiam muitas das paisagens que apreciara na subida. Aquelas
montanhas pareciam perenes, como as convicções. Algumas têm seus montes
cobertos de florestas verdes como uma mensagem de esperança. Outras estão
cobertas de neve e lançam seus picos esbranquiçados contra as nuvens azuis do
céu como um incessante pedido de paz. Existem aquelas cujos picos secos, feitos
de rochas pontiagudas e esqueléticas, desmentem com a sua nudez a ilusão das
impressões.
Sim! As montanhas são perenes, como as convicções que cada
pessoa cria, pensou Maurício, sem entender direito esse seu rasgo filosófico. Sossegados
grupos de ovelhas dividiam as pastagens, guiados pelos pastores e vigiados
pelos cães, enquanto aves serenas descreviam curvas mansas sob o céu. Nuvens
brancas se espreguiçavam e a tranquila paisagem que se assentava sobre aqueles
campos verdes perdia-se na distância. É isso!, pensou, a paz dessas montanhas
está-me deixando piegas. Há seis anos, sentara-se ali, naquela mesma pedra. A sua
mulher estava viva, mas não quisera segui-lo. Precisava cuidar dos dois
meninos, do filho e da filha, já adolescentes, que não podiam ficar sozinhos,
mas o apoiara e até mesmo insistira para que fizesse a peregrinação.
Lembrou-se de que também ficara observando os pastores, cada um
com o seu cão, que às vezes saía latindo para trazer de volta ao grupo uma ou
outra ovelha que se afastava. Parecia uma vida agradável, a de pastor. Ali, no
alto dos Pirenéus, ovelhas, cães, pastores, aves e paisagem formavam uma
harmonia onde a felicidade parecia supérflua. Agora não tinha mais a sua
companheira, e o Caminho ficara mais triste. Não deveria ter vindo. Não tinha
mais nada a provar e a peregrinação a Santiago é uma invocação da tristeza. Mas
tinha sobrevivido a momentos perigosos no Brasil e estava ainda viva na sua
memória a cerimónia misteriosa dentro de uma sala subterrânea no Real Forte
Príncipe da Beira, à margem do Rio Guaporé, no interior da Amazónia, que o
colocara no centro de uma perigosa conspiração para separar os Estados amazónicos
do Brasil». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial,
2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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