Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Gostava do silêncio e, mesmo quando ainda tinha sua família
e todos viviam no mesmo apartamento, procurava um cantinho da casa, longe das
discussões e dos ruídos de liquidificador, máquina de lavar pratos e secadores
de cabelo, embora não conseguisse livrar-se
do barulho da rua e da campainha do telefone. O Caminho era uma nova
oportunidade para repor o seu toque de silêncio. Estava assim pensando quando
reparou na mulher que tinha chegado junto com ele ao alto do monte. Ela bebeu
água sofregamente e depois abriu uma embalagem de onde tirou o lanche. Estava
cansada, mas conseguira acompanhá-lo na subida. Seguira-o de perto, desde os
pés dos Pirenéus, e agora estava ali, sentada, com o olhar para os montes que
acabara de subir, como se esperasse alguém com quem dividir o silêncio e a
beleza curvilínea das montanhas. Toda aquela paisagem lhe entrava pelos olhos e
ele sentia também a beleza da alma, como se os sentimentos fluíssem agora para
uma paisagem interna, que os olhos não veêm e o espelho não mostra.
Uma viatura da polícia apareceu ao longe, subindo as curvas
da estrada e dando a sensação de um pequeno barco jogado, ora para um lado ora
para o outro, pelas ondas de um mar encrespado. O veículo vinha com a sirene
ligada, destoando da calma paisagem, e parou perto da mulher. Um polícia ficou
ao volante e outro, de uniforme azul, bonito e impecável, com algumas divisas
nos ombros, desceu e dirigiu-se a ela. Senhora Marina, desculpe interromper a
sua peregrinação, mas vim pedir-lhe para me acompanhar de volta. Ela levou as
duas mãos ao rosto, tomada pela angústia. Aconteceu alguma coisa, sargento? O
sargento notou a presença de Maurício, mas respondeu: houve um acidente e o
burrico caiu no precipício. Um peregrino avisou pelo telemóvel de alguma coisa
suspeita e achamos melhor ir até lá.
Precipício? O burrico caiu num precipício? Oh! Meu Deus!,
exclamou ela, com voz desesperada. Decididamente, é difícil ser diplomático
numa emergência dessas. Acho melhor voltar comigo. Não vou mentir. Seu marido e
a menina morreram. A mulher empalideceu, pareceu meio estonteada, e desmaiou.
Os polícias colocaram-na viatura e desceram o monte de volta. Porque teria a
paisagem mudado, de repente? Os raios do sol ficaram quentes e as nuvens
brancas não tinham mais a leveza de antes. Em vez de ovelhas pastando
silenciosas sobre o gramado verde dos montes, ele via agora uma criança morta
no fundo de um precipício.
Saíra da Porta de Espanha, em Saint-Jean-Pied-de-Port, no sul da
França, que os peregrinos já cruzavam desde a Idade Média, às sete horas da
manhã, e já passava das onze. O primeiro trecho do Caminho, que vai até
Roncesvalles, no norte da Espanha, estende-se por uma distância de 27 quilómetros
e é considerado o mais difícil dos 800 quilómetros do percurso. Nessa etapa, o
peregrino vence um aclive de mais de 20 quilómetros de montes cheios de curvas,
quando então começa sua descida até Roncesvalles. Ele já andara uns 15 quilómetros
e agora pensava no espanhol que encontrara na saída de Saint Jean Pied de Port.
O homem tomara a iniciativa de cumprimentá-lo: buenos dias. Brasileno, no? Sim,
brasileiro, respondera em português. Vai fazer o Caminho? No, ahora. Me voy con mi hija a Roncesvalles
en un borrico. Ella tiene solamente 12 anos, pero mi mujer ya fue adelante».
In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial,
2009, ISBN 978-856-150-127-3.