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Manescalia.
Terra Santa. 3 de Julho, anno Domini 1187
«(…) Mais ainda, pensou Leofric, persignando-se
apressadamente. Acompanhou pelo canto do olho o pequeno cortejo que continuava pela
estrada fora e, quando viu a escolta da Vera Cruz muito longe, tentou levantar-se,
esperando do fundo do coração que aqueles cavaleiros já houvessem esquecido o
seu rosto. Como se chama?, perguntou uma voz em tom perentório. O soldado que pouco
antes o admoestara estava agora ali. Agora já não volta para trás, respondeu Leofric
ao levantar-se. O sargento observava-o do alto da sela, quase de pé sobre os estribos.
A sobreveste negra cruzada de vermelho. O rosto violáceo do cansaço, do sol, da
tensão. Não estou a falar do cavalo, estúpido. Refiro-me ao teu senhor. Leofric
olhou em volta. A sua cavalgadura era agora um ponto cinzento em movimento pela
estrada de Manescalia. Wigstan de Clontarf. Sir Wigstan, precisou, soprando a areia
para fora do capacete. Um irlandês, imagino. Outro qualquer, acrescentou o graduado,
desconhecendo que dizia uma meia-verdade, ter-te-ia deixado a descascar batatas.
Deslocou o peso do escudo que levava a tiracolo para equilibrar os movimentos do
cavalo. E posso saber, se não for demasiado incómodo, onde se encontra agora o teu
cavaleiro?
Leofric tentou compor-se,
arranjando o cinto de que pendia a bainha de uma espada curta de ferro que desaparecera
sabe-se lá onde quando fora arrancado dos estribos. Não sei, senhor, respondeu,
sincero, empurrando o elmo sobre a cabeça. O sargento esquadrinhou-o como se se
encontrasse diante de um leproso. Rapaz, se quiseres continuar a servir como
escudeiro de um monge do Templo, terás de aprender a manter-te colado ao teu senhor
como um chato ao cu de um porco. Estamos entendidos? Sim, senhor. Obrigado pelo
conselho, senhor. O sargento tentou dizer alguma coisa. Depois deteve-se. Desatou
a rir de repente.
Obrigado pelo conse1ho..., repetiu,
abanando a cabeça, divertido. O único conselho que te posso dar é ires para junto
de sir Wigstan o mais depressa possível. De certeza que já deve ter chegado ao acampamento.
Depois esticou um braço. Imagino que o jovem corcel que vi fugir para o lado contrário
do inimigo que nos preparamos para combater seja um dos teus, disse, sarcástico.
Depois olhou em volta como se tivesse perdido a armadura. Mas não vejo o outro
(os cavaleiros templários tinham três cavalos ao seu serviço; um para o cavaleiro,
outro para o seu escudeiro e outro ainda de reserva, normalmente utilizado para
transportar aprovisionamentos, armaduras e cobertores). Ficou magoado esta manhã,
pouco antes de nos pormos a caminho. Deixámo-lo nas cozinhas.
O sargento refletiu por instantes.
Tentou proferir alguma coisa quando um som abafado, semelhante a uma carga de trovões,
invadiu o vale. Os últimos conrois dos templários e dos hospitalários passaram
à sua frente, a grande velocidade. O sargento esporeou com fúria os flancos do animal,
fazendo-o relinchar de dor. Os nossos tocadores não usam tambores. Depois afastou-se,
deixando o escudeiro pasmado. Lamento, rapaz, mas terás de te desenrascar
sozinho, gritou-lhe de longe, sem se voltar. Se por acaso me cruzar com o teu senhor,
concluiu com uma gargalhada que se perdeu no vento, digo-lhe que as formigas não
te mataram.
Leofric
atirou com o capacete para o pó do chão. Estava sozinho. Longe dos
companheiros. Mas, sobretudo, longe da batalha que estava prestes a começar. Talvez
fosse verdade. O seu senhor teria feito melhor se o tivesse deixado a descascar
batatas naquela maldita embarcação fedorenta. Porque queres tornar-te meu escudeiro?
O cruzado deitara-lhe uma olhadela distraída, continuando a sentir as entranhas
esgotadas pelos constantes acessos de vómito. A embarcação que transportava a enésima
mão-cheia de cavaleiros para a Terra Santa partira de Génova pouco depois da alvorada
do dia anterior. (…) A reacção imediata do cavaleiro fora um encolher de ombros.
Não tendes um escudeiro, certo? O que te faz pensar isso?, respondera-lhe o outro
entre dentes. Depois vomitara mais uma vez. Porque um escudeiro nunca deixaria o
seu cavaleiro aqui a..., a... A vomitar como uma menina? É isso que estás a pensar,
certo? Leofric não respondeu. (…) Para mim não existem outros cavaleiros além dos
defensores do Templo de Salomão. O templário pesara demoradamente aquela resposta.
És irlandês, certo? Só então Leofric se apercebera de que se tinha dirigido àquele
homem sem pensar se seria capaz se compreender a sua língua. A sua pronúncia. O
cruzado ostentara um sorriso embaraçado. Chamo-me Oswald Wigstan e fui ordenado
poucas horas antes de pôr os pés nesta embarcação, rapaz. E, mesmo que tenhamos
em comum a terra em que nascemos ainda não me parece poder ser um bom guia. Mas
um cavaleiro não poder estar sem um escudeiro. Na verdade, nem sequer pensei nisso.
Aconteceu tudo tão depressa... (…) Sou ajudante de cozinha, senhor. Consigo descascar
cem batatas antes do virar de uma clepsidra. O cavaleiro templário tossira. Leofric
pensara que estaria a tentar reprimir o enésimo acesso de náusea, mas estava a procurar
conter uma gargalhada. Assim sendo, a vossa resposta é não, certo, senhor? Leofric
baixara a cabeça. Depois voltara-se enquanto a gargalhada do cavaleiro se perdia
no rumar das ondas contra a quilha. Espera, rapaz. Talvez um cavaleiro feito há
um dia se possa contentar com um escudeiro descascador de batatas. E depois, em
toda a minha vida, foste a primeira pessoa a chamar-me senhor». In Roberto Genovesi, O Templário
Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.
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