segunda-feira, 5 de junho de 2017

História dos Judeus Portugueses. Carsten L. Wilke. «Se a invasão dos visigodos, partidários da doutrina anti-trinitária de Ario, permitira um certo relaxamento da pressão eclesiástica…»

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«(…) Mas ela é, lá está, muito incompleta; da inscrição, ornada por uma menorah gravada, não resta senão a parte inferior, comportando uma datação em língua e calendário latinos: die quar[ta n] onas octo[bri]s era DXX, o que corresponde a 4 de Outubro de 482. O costume de redigir as inscrições funerárias em língua hebraica só se difundiu quatro séculos mais tarde. Assim, os dois epitáfios hebraicos encontrados em Espiche, perto de Lagos, tidos durante muito tempo como o mais antigo vestígio judaico em Portugal, não podem manifestamente datar do século VI como o pretendem os manuais, pois o seu vocabulário é nitidamente característico da Alta Idade Média.
Durante a primeira década do século IV, os bispos ibéricos, reunidos em concílio em Elvira, perto de Granada, tentaram impedir práticas que parecem testemunhar uma boa vizinhança entre judeus e cristãos: estes últimos, clérigos e laicos, deixavam-se convidar para os festins dos judeus; um costume consistia mesmo em fazer benzer os campos por um adepto da Lei de Moisés. O concílio insurgiu-se em particular contra o facto de judeus viverem maritalmente, ou em concubinagem, com cristãs. Essa interdição sugere que a diáspora judaica não ficou à margem da mistura étnica da época romana, provocada designadamente pelo tráfico e a libertação de escravos.
Antes de se impor o princípio talmúdico da transmissão matrilinear da pertença ao judaísmo, um judeu podia facilmente fazer entrar na sua comunidade uma companheira estrangeira ou, pelo menos, os seus filhos comuns. A oposição do clero a essas uniões mistas está na origem de uma rivalidade sexual, que reencontraremos frequentemente. Uma lenda de Mérida sobre Santa Eulália, datando da Baixa Antiguidade, revela-nos um judeu ardiloso a tentar converter à sua fé uma jovem cristã: graças a um milagre, por fim é ele que é convertido ao cristianismo. A hostilidade que esta lenda evidencia, realçada talvez por um autor medieval, não reflecte fielmente a atitude dos lusitanos da época face aos judeus. No século VI, o bispo Massona estatuiu expressamente sobre o facto de estes últimos não deverem ser excluídos das boas obras do hospital que ele fundara em Mérida.
Se a invasão dos visigodos, partidários da doutrina anti-trinitária de Ario, permitira um certo relaxamento da pressão eclesiástica, esta foi retomada assim que a monarquia voltou ao catolicismo, com a conversão do rei Recaredo, em 587. Em 613, o rei Sisebuto esteve na origem da primeira tentativa de forçar os judeus peninsulares a escolher entre o baptismo e a emigração. Mas a desordem interna do reino visigodo e a venalidade da sua aristocracia permitiram, mesmo aos baptizados à força, a prática mais ou menos clandestina da sua antiga religião. A perseguição culminou com o 17.º concílio de Toledo, em 694, quando os judeus e criptojudeus, que permaneceram no reino, foram colectivamente declarados culpados de conspiração com o inimigo muçulmano, reduzidos à escravatura e repartidos entre senhores cristãos, que lhes deveriam inculcar o Evangelho. É provável que estas medidas brutais tenham suscitado uma certa simpatia dos judeus oprimidos pelos árabes.

No Gharb dos Árabes
Se não houve nenhuma aliança judeo-muçulmana antes da invasão árabe, já o mesmo se não deu no curso da conquista. Quando em 711 as tropas do general Tariq atravessaram o estreito, os judeus de Málaga refugiaram-se em Granada; mas, uma vez alcançados pelos invasores, entenderam-se com eles e foi-lhes confiada a guarda da cidade. Na sequência de Tariq, Musa ibn Nusair, cujo exército era relativamente pouco numeroso, empregou sistematicamente esse meio de controlo das populações cristãs. Os judeus, párias de ontem, detinham assim por um momento a administração militar dos centros urbanos da Península, incluindo os do actual Alentejo. É o que nos informa um cronista cristão, o arcebispo Rodrigo Jiménez de Rada, que menciona um contingente judaico trazido da Andaluzia por Musa, a fim de o estacionar na cidade de Beja, conquistada em 713». In Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.

Cortesia de E70/JDACT