Cortesia
de wikipedia e jdact
«Fabrice Dufour, o vice-prefeito da pequena cidade de
Villers-Cotterêts, com as ruas pavimentadas de pedra, exibia uma expressão
sofrida. Ele estava encarregado da herança cultural da cidade, que, não
obstante a sua aparência modesta, era considerável. Isso incluía um breve
momento como o centro do poder na França do Ancien Régime,
quando, por ocasião da morte de Luís XIV, em 1715, seu sobrinho Filipe, duque
d’Orléans e regente de Luís XV, então com 5 anos de idade, decidiu que a corte
devia passar ali tanto tempo quanto fosse
possível. Essa pequena cidade cinzenta, 80 quilómetros ao norte de Paris,
adquiriu uma reputação fora do comum para o escândalo, mau comportamento e
devassidão reais, o que na França do século XVIII não era pouca coisa. O antigo
palacete renascentista que eu avistava acima do escritório em que me encontrava
fora cenário de jantares nudistas e orgias em larga escala envolvendo bondage, a
mistura de realeza e povo da cidade e a assistência de profissionais, tanto
masculinos como femininos. Essas festas eram chamadas de noites de Adão e Eva e
um cortesão recordava que, após o champanhe, as luzes eram desligadas e os
convivas despidos entregavam-se a uma flagelação mútua, procurando parceiros
segundo ditava o acaso da escuridão e com uma disposição que divertia Sua
Alteza imensamente.
Conta-se que anos mais tarde, Luís
XVI, o tímido e desajeitado marido de Maria Antonieta, corava de vergonha ante
a mera menção do nome da cidade, coisa que não ouviria com muito mais
frequência após 1723, quando o regente morreu e o foco da vida cortesã voltou a
transferir-se para Versalhes. Com efeito, só se ouviria falar da cidade outra
vez graças ao homem que me motivara a vir para cá a fim de saber mais sobre sua
vida, que vivera e morrera aqui mais ou menos na época da Revolução Francesa. O
próprio atraso desanimador do lugar, evidente nesse gelado dia de janeiro,
deu-me esperança de que certos documentos que eu acreditava existir talvez
pudessem ser encontrados aqui. Atrás de sua mesa, o vice-prefeito era um homem
imponente. Exibia um olhar preguiçoso que se entrecerrava de maneira
involuntária e uma tendência igualmente involuntária a sorrir fracamente quando
falava.
Por demais delicada, repetiu com
firmeza. Então ficou sem dizer nada por talvez trinta segundos, durante os
quais lançou olhares significativos para mim, para a janela e os objectos na sua
mesa. Notei uma revista sobre motocicletas na sua mesinha lateral, junto a uma
pilha de folhetos sobre o palacete. Não dava para ter a certeza, mas me parecia
que o vice-prefeito usava rímel. Os seus grandes olhos castanhos pareciam um
pouco bem definidos demais. Ele abanou a cabeça, sorriu e fez um som. Senhor,
sei que viajou dos Estados Unidos até aqui para vê-la, mas receio que isso seja
impossível de se arranjar. Comecei mentalmente a preparar um discurso
protestando de modo adequado em francês. Mais do que qualquer outra cultura na
terra, os franceses respeitam o protesto, e é por isso que regularmente
emperram as suas indústrias e instituições cruciais com greves gerais
nacionais, mas o protesto deve ser bem articulado. O vice-prefeito falou outra
vez, porém, antes que eu pudesse dizer uma palavra.
Será impossível de se arranjar, monsieur, porque a mulher que o
senhor veio até aqui para ver já faleceu. Pensei talvez ter compreendido mal. A
voz da mulher que concordara em me receber, de um museu local, seu nome era
Elaine, não parecia pertencer a uma pessoa idosa. Eu não sentira necessidade de
perguntar o seu sobrenome, já que era a única pessoa na cidade que trabalhava
lá, à excepção de um segurança. Foi muito súbito, disse o vice-prefeito. Achei
que tivesse acrescentado alguma coisa sobre uma enfermidade, talvez câncer, mas
não tive a certeza. O choque da informação pareceu fazer meu francês descer
dois níveis. Ela não mencionou nada para mim sobre estar doente, eu disse,
pesaroso. Ficámos todos chocados e muito tristes, disse o vice-prefeito. Tentei
manter a compostura e, após murmurar as minhas condolências, explicar sobre a
importância de ver os documentos sob a guarda dela: a maioria não vira a luz do
dia por duzentos anos, a não ser por momentos esporádicos em que tinham sido
vendidos por um coleccionador de obscura memória
da histórica francesa para outro, acabando por ir parar ali, no museu minúsculo
que contava com uma modesta verba para a sua aquisição. Perguntei se alguém
havia assumido as funções de Elaine; o vice-prefeito negou com a cabeça. Alguém
fizera um inventário do seu escritório? Examinara os seus papéis? Eu podia ver?»
In
Tom Reiss, O Conde Negro, 2012, Texto Editores, 2014, ISBN 978-972-474-661-6.
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