jdact
«O infante
Manuel assistia à missa no convento de Odivelas. Sentado num cadeirão de espaldas,
mesmo em frente do altar, teimava em mexer o pé direito de encontro ao pé esquerdo.
O bico da bota direita batia, pois, compassadamente, no da bota esquerda. Deixara
de ouvir o ofício divino, que Deus lhe perdoasse!, pois sentia grande dor nas
costas. Havia abusado. A montaria, caça sem tréguas e sem descanso dada a javalis
e a cerdos, abatia-se-lhe sobre o corpo e pesava-lhe nos ombros como se neles
carregasse um enorme fardo. Olhou para os seus companheiros pelo canto do olho.
Ali estavam sete fidalgos das mais distintas linhagens doreino, impassíveis, como
se tivessem acabado de dormir uma longa noite. Apesar das dores, o infante Manuel
não se mexeu. Sabia que todos os seus gestos eram seguidos com grande atenção.
Atrás dele, os fiéis esforçavam-se
por responder aos ritos enquanto o sacerdote, virado para o altar, entoava
monocórdico: misereàtur nostri omnipotens Deus et, dimissis peccàtis nostris,
perdùcat nos ad vitam aetèrnam. Ouviu-se um Ámen distraído. E logo depois: kyrie
eléison; Kyrie eléison; Christe eléison Christe eléison. Era evidente o fascínio
que os membros do grupo provocavam entre os populares, porque eram raros os dias
em que podiam ver tão ricos e coloridos trajes. Miravam-nos com curiosidade, mas
discretamente, ansiando talvez por uma palavra, um sorriso, uma esmola destes senhores
que, bem se via, eram nobres pelo trajar, pelo falar pela pose e pela quantidade
de cavalos, mulas e criados que os acompanhavam. Ainda no adro, as crianças atreveram-se
a chegar mais perto deles, levando por vezes bravos safanões por tal atrevimento.
Rapazes novos!, diriam os paroquianos habituais, nos seus trajes de ir ver a Deus,
de camisas brancas e fatos de cotim castanhos, os chapéus de feltro cambados nas
mãos, a testa branca imaculada e o restante do rosto tisnado pelo sol. Pouca vergonha,
é o que é!, diriam as mulheres de lenço atado à cabeça, as saias rodadas e os
pés descalços ou metidos em chinelos rasos e rotos, puxando a si os filhos rechaçados,
sabendo bem do que falavam. Mas agora, no interior do templo, também elas se distraíam
com as capas e os chapéus e as gorras de tecidos finos e cores garridas.
E a ida à missa ao convento de Odivelas
não permaneceria inocente, como não haviam permanecido inocentes as idas a Caneças
ou a Carnide, meses antes, uma vez que, mal se entoara o Kyrie, e já o infante Manuel
se havia fixado numa das noviças que assistia às cerimónias num pequeno varandim,
adiante de si, à mão esquerda, e nela se deteve durante a maior parte do tempo que
demorou o longo ofício. Era como se uma forte corrente de ar o impelisse para aquele
rosto redondo, muito fresco e bonito, os olhos invulgarmente azuis, de um azul profundo,
a boca pequena e fina, o cabelo escondido pelo véu de noviça, em hábito de coro
castanho e capa branca. À medida que decorria a missa, o infante alternou o seu
estado entre o semienfeitiçado e o devoto, cumprindo os gestos rituais, ora
ajoelhando, ora erguendo-se, ora rezando, ora fingindo meditar, ora não podendo
mesmo concentrar-se, já porque estava enfeitiçado, já porque lhe doíam as malditas
costas... Não se pense que não era homem de fé. Era. Mas, por vezes, no seu interior
as coisas do mundo sobrepunham-se às do Alto e, as mais das vezes, depois desses
momentos de desvio, acabava sempre por confessar contritamente o seu arrependimento.
Quanto à noviça, de seu nome Isabel,
encolhia-se no seu lugar, embora se regozijasse perante o interesse do estranho.
Sentia as frontes a arder porque não havia maneira de o fidalgo desviar o olhar
do seu rosto. Era noviça, a sua vocação não estava determinada, o seu estado podia
não ser definitivo. Mas ela sabia de histórias de traições e pecado que corriam
por entre as paredes de muitos conventos, tendo algumas delas como resultado alguns
filhos de Deus para criar. E eram histórias que, na maioria das vezes, haviam
sido encovadas, como um morto se enterra no seu sepulcro, mas que se sabiam por
criadas ordinárias ou por velhas freiras mentecaptas que, nos seus delírios de demência,
acabavam por revelar das suas vidas o que até então fora oculto com desvelo. E
eram histórias de amores e de fugas, de prisões e violências, histórias passadas
entre aqueles muros». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra,
Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.
Cortesia de OdoLivro/JDACT