cortesia de wikipedia e jdact
«(…) O facto mais insignificante era motivo para que se
criasse uma espécie de tribunal inquisitorial: se, por exemplo, durante a inspecção, um
jovem deixava escapar um leve sorriso nervoso misturado com a perplexidade que
a figura marcial do prior inspirava, a silenciosa fúria não se fazia esperar.
Imediatamente, ordenava que todos ficassem em duas filas opostas e, passando
por aquele estreito corredor infantil, examinava cada rosto, ao acaso, e
escolhia um fiscal para o juízo sumário. O acusador escolhido devia indicar o
culpado e determinar a pena que lhe cabia. Se o infeliz escolhido demonstrava
uma atitude de cumplicidade, alegando desconhecer a identidade do responsável,
então passava a ser o culpado pelo facto, e outro menino era escolhido para decidir a
pena que lhe correspondia. Se o prior considerava que o castigo era muito
brando e apoiado na camaradagem, então o indulgente verdugo também era acusado.
E assim, condenando inocentes como se fossem culpados, conseguia que alguém
confessasse o delito original. Mas os castigos antes indicados eram piedosos se
comparados com o mais temido de todos,
que despertava nos meninos um terror superior ao causado pela ira de Deus: la casa dei morti. Por esse
nome era conhecido o velho presídio, o temido inferno a que desciam aqueles
que, por seus graves delitos, eram expulsos do Ospedale. A casa dos mortos era uma fortaleza que ficava no alto de
um penhasco que coroava uma montanha sem nome. Cercada por cinco muros que se
precipitavam no abismo e por uma fossa de águas negras que paravam ao pé do
monte, era impossível sequer imaginar um modo de fugir. De maneira que, por
mais cruel que fosse o castigo, cada vez que o prior dava uma sentença para ser
cumprida dentro dos muros do Ospedale, o réu soltava uma suspiro de alívio. O inspector do
arcebispado parecia ter um especial interesse no jovem Pietro. Ou, dizendo de
outra forma, o antigo rancor que o prior tinha em relação ao padre Verani
convertia o preferido do padre em alvo de todo o ressentimento de Severo
Setimio. Nem bem havia sabido da recém-descoberta vocação de Pietro, determinou
que estava proibida qualquer manifestação em papéis, tábuas, telas e,
principalmente, em muros, paredes ou em qualquer superfície do orfanato. E,
obviamente, confiscou todos os instrumentos que servissem para a pintura. De
modo que, cada vez que a irmã Maria escutava a voz do prior Severo Setimio, se
apressava a apagar qualquer marca que ficasse da obra demoníaca de Pietro. O
padre Verani fazia verdadeiros esforços para distrair o inspector do
arcebispado, a fim de dar tempo para a religiosa limpar as paredes, esconder os
utensílios de pintura e limpar as mãos do pequeno, cujos dedos sujos delatavam
o crime. De qualquer forma, mesmo que o prior nem sempre conseguisse reunir
provas suficientes, ele sabia que o padre Verani escondia as actividades de Pietro.
Na dúvida, de todos os modos, sempre dava um castigo para o preferido do abade.
O padre Verani sabia que, se um espírito generoso e piedoso não protegesse o
pequeno Pietro, quando ele tivesse idade suficiente seria inevitavelmente
levado à casa dos mortos». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos,
L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.