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«(…) Naquele
distante dia, quando Francesco Monterga conheceu o protegido do abade, não
conseguia esconder o assombro, enquanto via a destreza com que o pequeno movia
o carvão sobre a tela. O menino levantou-se, olhou para o velho mestre e fez
uma reverência. Então o padre Verani fez um gesto discreto para o menino,
apenas um movimento de sobrancelhas. Sem dizer nada, o pequeno Pietro pegou um
papel, comum, não-prensado, subiu numa cadeira e, ajoelhado, chegou à altura da
mesa. Cravou os seus olhos no rosto do mestre e examinou-o dos pés à cabeça.
Francesco Monterga era um homem corpulento. Sua barriga avantajada ficava
dissimulada em virtude de sua grande estatura. A cabeça, colossal e
completamente calva, parecia de mármore. Uma barba densa e cinzenta dava-lhe um
ar santo e assustador. A aparência do mestre florentino impunha respeito. No
entanto, o tom da sua voz e seus modos contrastavam com aquele porte de
lenhador: tinha um tom de voz levemente agudo e falava com entonação
amaneirada. Seus dedos, compridos e finos, nunca paravam, e seus fortes braços
acompanhavam cada palavra com um gesto redundante. Quando, por alguma razão,
ficava nervoso, parecia não conseguir controlar os olhos, que piscavam de modo
irritante. Nesses momentos, seus olhos, castanhos e profundos, se transformavam
em duas pedras tímidas e evasivas, feitas de incertezas. E esse era o caso no
momento, enquanto inesperadamente posava para o artista precoce. O menino
apertou o carvão entre seus dedos pequenos e se dispôs a começar o trabalho.
Com certa malícia, Francesco Monterga virou, de repente, a cabeça na direcção
oposta. Pietro trabalhava concentrado no papel e eventualmente olhava para o
mestre, e parecia nem se importar que este tivesse mudado de posição. A vela
que queimava sobre a mesa levou mais tempo para queimar do que o menino para
terminar o seu trabalho. Desceu da cadeira, caminhou até ao mestre, entregou-lhe
o desenho e fez nova reverência. Francesco Monterga olhou para o desenho, e era
como ver-se num espelho. Meia dúzia de riscos que resumiam com precisão as
feições do pintor. Abaixo da figura, em letras românicas, era possível ler: Francesco Monterga
Florentinus Magister Magistral. O coração do mestre saltou no
peito e, mesmo sendo um homem de emoções comedidas, ficou comovido. Nunca havia
recebido um elogio semelhante; nenhum colega se havia dado ao trabalho de fazer
um retrato do mestre. Nem mesmo ele se havia permitido a íntima homenagem de um
autoretrato. Era a primeira vez que via o seu rosto fora do espelho quebrado do
seu quarto. E, mesmo gozando de reconhecimento em Florença, nunca o haviam
honrado com o título de Magister Magistral. E agora, enquanto contemplava o
retrato, pela primeira vez pensou na posteridade.
Vendo-se no papel, confirmou que
era um homem velho. A sua vida, pensou, não era nada mais que uma sucessão de
oportunidades não aproveitadas. Podia ter brilhado com a mesma força que Dante
vira em Giotto, acreditava ter o mesmo direito ao mesmo reconhecimento de que
gozava Piero della Francesca, e certamente merecia a mesma riqueza que Jan van
Eyck havia acumulado em Flandres. Como o holandês, poderia ter aspirado à protecção
da Casa de Borgonha ou mesmo à de
Médicis, e não teria que depender do pobre mecenato do duque de Volterra.
Agora, no Outono de sua existência, pensava que não havia deixado, na sua
rápida passagem por este vale de lágrimas, a semente de sua descendência.
Estava completamente sozinho.
Era possível dizer que o padre Verani podia ler nos olhos
ausentes de Francesco Monterga. Estamos velhos, disse o abade, e conseguiu
arrancar do mestre um sorriso amargo. O padre colocou as mãos sobre os ombros
do pequeno Pietro e o aproximou um pouco mais do pintor. Tossiu, buscou as
palavras mais adequadas, adoptou um ar circunspecto e, depois de um longo silêncio,
com uma voz insegura mas decidida, disse: tome conta deste menino.
Francesco
Monterga ficou petrificado. Quando conseguiu entender o sentido daquelas quatro
palavras, enquanto voltava o seu rosto para o padre Verani, o seu rosto foi-se
transfigurando. Até que, como se tivesse visto o próprio demónio, deu um passo
atrás, num movimento espasmódico. A ruga que atravessava as suas sobrancelhas
revelava uma mistura de espanto e fúria. E pensou ter entendido a razão de
tanta homenagem. Francesco Monterga era capaz de passar da calma à ira em menos
tempo do que tarda o trovão após o relâmpago. Nessas ocasiões, sua voz ficava
ainda mais aguda, e as suas mãos desenhavam no ar a forma de sua fúria. Era
isso o que querias de mim. Sacudiu o retrato que ainda tinha nas mãos, e não
parava de repetir: era isso o que querias...» In Federico Andahazi, O Segredo dos
Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
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