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Baseando-se
no conhecimento de todas estas formulações, Philippe Ariès acabou por as
generalizar. Se a duração da infância era reduzida ao período de maior
fragilidade, em que a cria humana não se bastava a si própria na Idade Média
passar-se-ia directamente de criança muito pequena a adulto jovem, sem passar
pelas várias etapas da juventude. Ora, tais conclusões revelam-se, hoje,
demasiado radicais. Com efeito, mesmo a nível das
representações, assistiu-se, a partir da Baixa Idade Média, a uma participada
problematização das características e especificidades da primeira das idades do
homem, desde a questionação do momento exacto dos seus começos, até à
elaboração de complexas considerações normativas relativamente ao respectivo
enquadramento social. Ao mesmo tempo, aliás, que as fontes documentais começam
a permitir a revelação da existência de um vocabulário consciente e atento às
realidades do crescimento infantil, distinguindo e considerando diferentes
níveis etários na infância e na puberdade. Antes de mais, a criança começou a
suscitar um alargado debate sobre o exacto momento da sua entrada na vida. Para
a maioria da população leiga, o início da infância coincidia com a hora do
parto, constituindo o grito da criança ao nascer a mais forte manifestação da
afirmação pública de um novo ser. No grupo dos letrados, porém, recuava-se à
altura em que o feto teria recebido a alma, variando, contudo, o cômputo dos
dias em que essa ocorrência se verificaria. Entre as seis e as sete semanas
para os que a situavam na fase em que o feto adquiria os respectivos membros
sem distinção de sexo e, para os seguidores da concepção aristotélica, aos
quarenta dias para o rapaz e aos noventa para a rapariga.
Em 1234, o
papa Gregório IX adoptou como posição oficial da Igreja a segunda das teses,
passando então os textos normativos eclesiásticos a considerar que a criança
não só começava a sua infância antes do nascimento, como sobre ela já penderiam
determinadas regras e disposições. Nas actas dos sínodos diocesanos, nos
penitenciais e nos livros de milagres portugueses, ou redigidos em língua lusa,
era essa a situação dos nascituros, referidos como fruytos, ou seja, os fetos que já se encontram
concebidos como crianças, contando-se, por exemplo, entre os milagres
atribuídos a Nuno Álvares Pereira, terem sido agraciadas parturientes, quer com
a criança morta no ventre quer com a criança atravessada com uma perna e um
braço de fora ou ainda com complicados partos. Entretanto,
os canonistas e os legistas multiplicavam as referências feitas às crianças na
legislação produzida, passando estas a definir um grupo etário crescentemente
abrangido por normas e procedimentos jurídicos diferentes dos aplicados aos
rapazes e raparigas que, após a entrada na adolescentia, aos, respectivamente, catorze e doze
anos de idade, passavam a estar quase sempre enquadrados pelo regime reservado
aos adultos. Neste sentido, as regras e as práticas jurídicas acabam por
reflectir e testemunhar a progressiva construção medieval de uma concepção de
criança valorizada e diferenciada mesmo que, atendendo à reduzida esperança de
vida desta época e às categorias mentais herdadas da Antiguidade, se confinasse
aos anos correspondentes à infantia e à pueritia, não coincidindo assim, seja com a tendência moderna e
contemporânea de nela também vir a incluir uma parte da adolescentia, seja com a actual consideração de uma
meta etária comum aos rapazes e às raparigas para atingir a idade adulta.
Abandonava-se, neste último caso, a concepção aristotélica, muito presente na
cultura letrada masculina da Idade Média, de que a precocidade da mulher no que
diz respeito à sua completa maturidade se deveria ao facto de que as leis da
natureza finalizariam mais depressa o que era menos nobre, complexo ou
subalterno.
Entre os
juristas da Baixa Idade Média, foram, sobretudo, os canonistas quem mais
precocemente se ocupou com o direito da criança, produzindo uma abundante
legislação sobre as interdições e as protecções devidas à consideração da sua
idade, a qual foi depois, em grande parte, adoptada e ampliada pelos
civilistas. No seu conjunto, todo esse labor jurídico baseava-se na
consideração de uma escala muito mais precisa das etapas de crescimento e
maturidade a percorrer pelas crianças até atingirem a adolescentia, e, uma vez ultrapassadas as duas fases,
uma semi-plena, terminada aos dezoito anos, e outra plena, chegarem à juventus,
a idade em que, cerca dos vinte e cinco anos, entravam finalmente no mundo dos
adultos e dos seus deveres e responsabilidades relativamente à sociedade e à
crença. De facto, antes da adolescentia, tanto os canonistas como os teólogos começaram a defender a
consideração de uma responsabilização individual mais branda e
desculpabilizante, propondo, em primeiro lugar, que fosse progressivamente
acentuada durante a pueritia, mais
no decorrer de uma sua segunda metade, dos dez e meio até aos doze para as
raparigas e catorze para os rapazes, do que numa primeira, iniciada aos sete
anos, e, em segundo lugar, que na considerada primeira infantia, do nascimento até aos três ou cinco
anos, fosse completamente ignorada, tendo em conta que o in-fans, mesmo que já falasse e pudesse
confessar as suas faltas, deveria ser considerado inocente e alheio à intenção
de pecar, pelo menos enquanto não atingisse a segunda fase da sua primeira
idade». In
Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa, Revista
Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006,
ISSN 1646-740X.
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