“Aqui
estamos, tal como os guerreiros sob a tenda de campanha, tratando de conquistar
o céu por meio da violência. A existência humana sobre a terra é idêntica à do
soldado e embora prossigamos este combate afundados em nossos corpos actuais,
estaremos porém peregrinando ao Senhor, isto é, à Luz”. In Sermão XXVI de São Bernardo
«Entre
os homens do período da História a que se convencionou chamar Idade Média
existem poucos cuja reflexão se revele mais oportuna nos nossos dias do que a
de São Bernardo. Antes dele a vida monástica é dominada pelas visões do
Apocalipse e do Juízo Final. Com a experiência do Absoluto, num espírito de
intensa afectividade, caracterizado pelo amor e pela contemplação do corpo
flagelado de Cristo, o abade de Claraval anuncia um novo caminho para o Homem.
Toda a sua vida é não só um exemplo de puro espírito contemplativo, algo que
hoje podemos considerar paradoxal dado o poder que granjeou nos assuntos da
Igreja e no panorama sócio-político da sociedade medieval, como a sua figura é,
com toda a propriedade, a chave no entendimento do carácter tradicional da experiência
religiosa e mística, em claro confronto com a visão pragmática e cientista de
alguns dialécticos do seu tempo. O historiógrafo normando Orderico Vital, seu
contemporâneo, escreveu, a propósito da sua personalidade, que um dia o
mundo inteiro acordará cisterciense.
O estudo de
São Bernardo tem sido denso ao longo dos tempos, sobretudo desde o século XIX,
abarcando pontos de vista muito diversos e aprofundados. A produção literária
que suscitou permanece muito elevada no decorrer dos séculos, cuja quantidade
assinala também, desde logo, algo substancialmente qualitativo. São Bernardo é
uma daquelas personalidades da História sobre as quais se constituíram extensas
massas documentais, muito bem inventariadas, de vários autores, que apresentam
diferentes tendências da pesquisa científica. Alguns destes assinalam uma
ruptura significativa no entendimento do santo durante o ciclo de destruições e
reconstruções característicos da Revolução Francesa. Porém, as primeiras
edições das obras do abade de Claraval são datadas ainda do século XVII,
através da acção de Horstius, em 1641, e Mabillon, em 1667, que nos seus
prefácios assinalaram a necessidade de confrontar os escritos
pseudo-bernardinos com aqueles cuja autenticidade era indiscutível,
contribuindo para lhe atribuir uma aura de escritor e teólogo clássico. Mas já
o século XIX veio a conhecer uma divergência de interesses gritante no que se
refere à figura do santo. De facto, se, em 1819, na senda do ódio revolucionário
às instituições religiosas, a abadia de Claraval é demolida e vendida pedra por
pedra, o caso de
Cluny é idêntico, embora não tenha desaparecido toda a construção, num processo
que decorreu entre 1810 e 1823, em 1830 o papa Pio VIII confirma o decreto da
Congregação dos Ritos nomeando o abade de Claraval Doutor da Igreja.
A partir
desta data, coincidindo com uma atmosfera de renovação católica, que será
sentida sobretudo a partir dos finais do século XIX, em que o pensamento
medieval se vê repentinamente revalorizado, a personalidade do santo vai
constituir-se cada vez mais objecto de reflexão, proporcionando a sua imagem um
alento inspirador de fé e de cultura. Todos se inclinam espontaneamente diante
da sua autoridade espiritual, exacerbam a sombra ou a luz que fazem marcar os
destinos, as personalidades, isto apesar da sua latente humildade e dos
esforços que sempre fez para permanecer na sombra. Michelet, no seu célebre
retrato do santo, não hesita em o confrontar com Pedro Abelardo, numa
comparação que constituiu a base de muitas das investigações empreendidas até à
actualidade. Diversas efemérides marcaram esse trajecto histórico, entre as
quais se salientam: as diversas revistas de estudos cistercienses publicadas
desde 1884; as comemorações, em 1890, do oitavo centenário do seu nascimento; a
celebração, em 1930, do centenário do seu título de Doutor da Igreja; e as
notáveis manifestações, em 1953 e 1974, dos oitavos centenários do seu
falecimento e da sua canonização, respectivamente.
Jacques le
Goff, como outros autores actuais, vê no episódio entre o abade de Claraval e
Abelardo um confronto no qual o partido da santa ignorância opõe (...) a
escola da solidão à escola do ruído, a escola do claustro à escola da cidade, a
escola de Cristo à de Aristóteles e de Hipócrates. Este tipo de comparação
tem servido para valorizar a obra do professor parisiense, que foi, para Paul
Vignaux, o cavaleiro da dialéctica, primeira figura de proa da
modernidade, relegando para segundo plano aquele que, na opinião de le Goff,
foi um grande inquisidor antes
do tempo. Felizmente para a nossa pesquisa, vários têm sido, de igual modo,
os autores que contribuíram durante o presente século para um esclarecimento
mais preciso da vida e da obra de São Bernardo. Os trabalhos de Étiénne Gilson
trouxeram à luz do dia o direito de o abade de Claraval ser considerado não
apenas como um entusiástico autor espiritual de grande responsabilidade moral,
mas também como um autêntico teólogo. Por outro lado, a criteriosa investigação
de Jean Leclercq, centrada na imensa tradição manuscrita dos escritos do santo,
teve a particularidade de precisar as diferentes redacções das mesmas obras e
trouxe um dinamismo renovado em torno da sua figura. René Guenon já o tinha
considerado como o último dos Padres da Igreja e guia nos últimos
círculos do Paraíso dantesco. Outros autores mais recentes corroboram essa
opinião, casos de O. Rousseau e E. Marcolini. No que toca à História da Arte
não se pode ignorar o êxito que o livro Saint Bernard - L'art cistercien
de George Duby teve para o grande público. Mas também não é possível, na mesma
linha de investigação, esquecer a obra de P. Anselme Dimier, cujos trabalhos
apontam caminhos em muitos aspectos ainda inexplorados. Hoje em dia são mais
significativas as vozes em torno do estudo do abade de Claraval. Citando Jean
Leclercq, se Bernardo é difícil de conhecer e, por certo, de amar, é por
causa da complexidade da sua pessoa e da sua obra. E esse mistério, que
continua a rodeá-lo, deverá estimular,
não mais desanimar, uma pesquisa, tão objectiva quanto possível, do verdadeiro
São Bernardo». In Nuno Villamariz Oliveira, O Ideário de São
Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária, Revista
Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006,
ISSN 1646-740X.
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