O
Assassin de Lisboa 1142-1143
«Depois de deixar Zaida, o almocreve
Mem regressou ao seu antigo labor, comerciando entre Alcácer, Évora e Beja. O novo
território de trocas foi escolhido por várias razões, sendo que a primeira era
estar mais perto de Silves, sabendo dessa forma notícias sobre Zaida. Além disso,
evitava Santarém, onde Abu Zhakaria, o governador da cidade, e Fátima, esposa dele
e irmã de Zaida, o hostilizariam. Talentoso e de palavra, bastaram alguns meses
para Mem ressuscitar a fama de hábil fornecedor, fiável nos negócios. Durante as
curtas estadas nas povoações, onde trocava frutas, carnes, peixe, tecidos e peles,
ia coleccionando clientes, ao mesmo tempo que encantava corações femininos com o
seu charme, minorando o desencanto causado por Zaida. Meninas aos molhos,
apagam vossos olhos. Mem atravessou assim o Outono e o Inverno, mas quando no
ar se sentiu o cheiro da Primavera de um novo ano, sofreu um profundo abalo. Certo
dia, em Beja, um almoxarife contou-lhe que Ibn Qasi ia ser pai, a princesa Zaida
estava grávida! Foi como se lhe tivessem espetado uma faca no peito e sentiu desabarem
as esperanças.
Embora cumprisse o pedido de Zaida,
fizera-o convencido de que um dia ela o chamaria de volta. Mas não, seguiam caminhos
separados, a princesa cruzara o sangue real com o de Ibn Qasi, ia dar-lhe
descendência, tornando-se não só a esposa de um dos mais célebres chefes da
Andaluzia, mas também o ventre onde se gerava um futuro herdeiro ou herdeira do
sufi e de uma Benu Ummeya. Marido emir, esposa a florir. Naqueles
dias, Ibn Qasi ascendera a principal adversário do príncipe Ismar, rei de Córdova.
Férreo na doutrina, o sufi acusava o outro de ser um usurpador do trono cordovês
e os seus fiéis espalhavam pela Andaluzia que seria ele, e não Ismar, o futuro líder
do vasto espaço mouro que ainda resistia aos cristãos. Não foi, contudo, a aura
política de Ibn Qasi que desequilibrou Mem, mas sim a consciência dolorosa da
sua irrelevância como amigo de Zaida. Ela estava grávida, o que atirou o
almocreve para um abismo de abatimento.
Homem sem tino, torna-se
libertino.
Quando partiu para Lisboa, Mem já era um fantasma ambulante e por isso sentiu-se
em casa por lá. Aquela cidade onde se fornicava nas ruas e nos logradouros, foi
a concha em que se perdeu. Ao longo da vida, Mem nunca fora de usar em excesso a
bebida, aplicando-a apenas para evaporar a relutância das mulheres mais tímidas.
Porém, naqueles dias usou em si o poder irresistível dos espirituosos líquidos.
O abuso deles minorava-lhe a dor, transportando-o para um limbo de anestesia sentimental,
que lhe bloqueava a memória e lhe permitia o apagamento da ética do galanteador,
substituindo-as pela selvajaria do macho descontrolado e incontinente que ele
nunca fora. Amante de vinho, jamais fica sozinho.
Bêbado quase sempre, Mem começou a
dar-se às práticas ímpias. Se uma soldadeira descarada lhe enviava um piropo, agarrava-se
a ela com sofreguidão, como se o convívio breve com aquele corpo quente o libertasse
da tristeza. Fornicava então, como os outros, num beco escuro de Alfama ou nas traseiras
de uma loja da almedina. Homem perdido, tudo fo… Noite após noite, enrolava-se
com raparigas famintas, que ficavam encantadas por lhe abrirem as pernas, pois ele
era muito bonito e sentiam-se com sorte, acostumadas a homens rudes, porcos e feios.
Para surpresa delas, Mem ainda as brindava com um enorme atributo íntimo. Mulher
entusiasmada, gritaria exagerada. Em poucos meses, Mem ficou famoso entre a
confraria das disponíveis. É claro que, perante tal frenesim, os homens agitaram-se
e Mem passou a ser mirado com inveja e depois apontado a dedo, como um
perturbador dos equilíbrios naturais daquela urbe pecaminosa». In Domingos
Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN
978-989-741-713-9.
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