quinta-feira, 13 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Quando Mem reentrou nos portões da muralha, nascia já uma revolta generalizada contra esses vagos inimigos que queriam acabar com a boa vida»

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O Assassin de Lisboa 1142-1143
«(…) Quem se destaca, os rivais ataca. Mem sentiu o alerta e, num dia de mais lucidez e menos pinga, abandonou Lisboa e partiu para Alcácer, onde se deteve algumas semanas. Contudo, mal regressou a Lisboa, Mem notou de imediato que a irrequieta irresponsabilidade que caracterizava a cidade fora substituída por um manto de receio, um coágulo de medo que paralisava a excitação do costume. Mulheres e homens já não se sentiam imunes e a ausência de soldados, antes tão gabada como condição essencial para a celebração livre do sexo, passou a ser vista como um perigoso vazio onde uma nova ordem nascia. Em ruas com medo, mata-se em segredo. Lisboa tinha a sua dose de bandidos, salteadores e ladrões, mas a selvajaria era pontual, motivada por minúsculos dramas ou praticada por recém-chegados mal habituados à vadiagem intrínseca dos indígenas. De repente, a povoação sofreu um solavanco alarmante, pois apareceu muita gente morta em plena rua. Primeiro, finara-se uma soldadeira anafada, depois, um mancebo jeitoso demasiado dado aos homens, de seguida, encontrara-se o cadáver de um artífice e certa noite haviam sido descobertos, junto ao porto, dois marinheiros de peito rasgado.
A princípio, não se desconfiara de qualquer ligação entre as inesperadas ocorrências, mas aos poucos, como estas se propagavam, foram notados pontos comuns. Os que morriam ou eram cristãos, pois havia-os também muitos em Lisboa, ou moçárabes convertidos à força, que mantinham em segredo as práticas antigas. E todos morriam da mesma forma, com um golpe de uma lâmina afiada, que lhes perfurava o peito junto ao coração. Feridas iguais, óbvios rituais. A população mais receosa ficou quando certos indivíduos descarados justificaram a mortandade com a devassidão de Lisboa. Surgira um grupo de vigilantes moralistas, determinado a pôr fim ao caos desbragado, mas ninguém percebia quem podia apresentar-se com tais ambições, pois a cultura lisboeta há anos que promovia os pecados carnais.
Quando Mem reentrou nos portões da muralha, nascia já uma revolta generalizada contra esses vagos inimigos que queriam acabar com a boa vida. Muitos queixavam-se ao wali da cidade, um velho ainda nomeado pelo califa de Marraquexe, que já nada mandava, pois nem soldados tinha; ou ao alcaide, um corrupto espertalhão, que não mostrava qualquer vontade de impor regras, pois era na desordem que prosperava. Perante a matança, morre a confiança. Inquietos, os moçárabes dirigiram-se ao bispo local, mas este também pouco podia, não tinha nem tropas nem aliados muçulmanos entre as famílias mais nobres, que se borrifavam para o bem-estar da comunidade convertida. Os protestos nada produziram, a não ser o crescimento da vaga de mortes. Vendo que a abúlica cidade não reagia, mais assassínios se cometeram e certa noite foram vistos vários homens, de manto vermelho e capuz da mesma cor, liderados por um mascarado, com a cara coberta por trapos e que carregava uma lança. Os denominados Mantos Vermelhos atacavam em matilha, paralisando as vítimas até que o chefe se aproximasse e espetasse uma lança no coração dos pobres coitados.
Perante tal manifestação horrorosa, a balbúrdia geral da cidade diminuiu fortemente de intensidade e, ainda decidido a esquecer Zaida com exageros físicos, Mem viu-se confrontado com a impossibilidade de os praticar. Desapontado, preparava-se para partir outra vez, talvez rumando a Évora, quando certa noite se cruzou com três irmãs moçárabes, numa situação de risco de vida. Um pouco à frente delas, Mem viu surgir dois Mantos Vermelhos, altos e tenebrosos, que as ameaçaram de morte. O almocreve nem hesitou e disparou logo duas flechas, matando um deles e ferindo com gravidade o outro. Ajoelhando junto ao moribundo, Mem ficou a saber que os Mantos Vermelhos viviam perto da povoação de Almada, na margem oposta do Tejo, sendo liderados por um tal Orimar, talvez normando, talvez bretão». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.


Cortesia da CasadasLetras/JDACT