domingo, 16 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Aquelas espantosas e velhas pedras iá haviam visto muito, tanta vileza humana ali despontara ou perecera, e eu preocupado com a rocambolesca intriga de Compostela!»

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O Massacre dos Templários. Roma, 1144
«Naquele novo ano, para azar de Chamoa, os papas mudaram ao ritmo das estações do ano. Celestino II, eleito no Outono, não durou sequer até ao final do Inverno. Se, em Dezembro anterior, a publicação da sua bula Clavis Regni nos dera novo alento, o papa prometera reconhecer Afonso Henriques como rei, em troca do recebimento anual de quatro onças de ouro, em Março a sua morte súbita desanimou-nos. A embirração que o desaparecido pontífice devotava à casa da Sabóia não era partilhada pelo sucessor, Lúcio II, que logo exigiu a renovação das negociações para o matrimónio com Mafalda da Sabóia, obrigando o arcebispo de Braga, João Peculiar, a apresentar-se em Roma para receber instruções. Apesar de incomodado com mais uma súbita mudança, Afonso Henriques sabia que a diplomacia religiosa se mantinha essencial. Nesses dias, meus queridos filhos e netos, o reino de Portugal era ainda uma entidade embrionária e tornava-se absolutamente imperativo convencer o novo papa da sua viabilidade e legitimidade. Por isso, a Roma não foi apenas o arcebispo Peculiar, mas também meu pai, o mordomo do novo reino.
Dias antes de partir, Egas Moniz desafiou-me a acompanhá-lo, coisa que minha mulher, Maria Gomes, apoiou, mas que Chamoa obviamente não aprovou. Desapontada, nem sequer veio despedir-se e segui para Roma com um sentimento misto. Por um lado, estava entusiasmado com a minha primeira grande viagem, ia conhecer a cidade onde morrera São Pedro e também viajar até Dijon e Cluny, pois meu pai desejava visitar o abade Bernardo de Claraval, um dos mais eminentes religiosos da Cristandade e patrono dos templários. Por outro lado, sentia alguma inquietação. Já imaginando de novo um futuro desagradável onde nunca seria rainha, Chamoa poderia espalhar a intriga de Compostela, aproveitando o vácuo deixado pela partida de Egas Moniz, única testemunha viva da cabala.
Temendo tal risco, pedi a Pêro Pais que convencesse a mãe a nada dizer sobre assunto tão delicado. Melhor seria que Chamoa esperasse pelo meu regresso, pois era incerto o resultado final daquelas negociações matrimoniais, que tantos avanços e recuos já tinham sofrido. Parti descansado, prometeu-me Pêro Pais. Confiei naquele rapaz, que já era um homem aos dezassete anos, e embarquei, em Montemor, num barco que subiu até Compostela, dobrou o cabo Finisterra e rumou à Vascónia, onde desembarcámos. Daí, seguimos a cavalo até Barcelona e nessa bela cidade tomámos nova embarcação, que nos fez chegar a Roma em poucos dias. Devo dizer que a cidade papal me causou forte impressão. Não tanto pelas múltiplas igrejas, mas sobretudo pelos vestígios imponentes da civilização romana que ainda existiam. No dia em que João Peculiar e meu pai foram recebidos pelo papa, na Igreja de São Pedro, visitei o Coliseu de Roma e foi junto a esse monumento gigante que senti a pequenez da minha vida e das malícias humanas que me consumiam.
Aquelas espantosas e velhas pedras iá haviam visto muito, tanta vileza humana ali despontara ou perecera, e eu preocupado com a rocambolesca intriga de Compostela! Que interessavam as acusações torpes dos nossos inimigos, que duravam desde os tempos da malfadada dona Urraca? A ideia de que Afonso Henriques podia ter sido trocado era uma enorme canalhice, meu pai e minha mãe tinham sido extremamente dedicados ao menino desde cedo, só mentes diabólicas podiam acreditar em tal patranha! Meu pai sempre fora um homem de princípios, era impensável que tivesse patrocinado uma intrujice tão requintada, e foi com esse pensamento solidificado dentro do meu coração que regressei para junto dele. No dia seguinte, partimos em direcção a Sabóia. O papa Lúcio II fora claro como água: era essencial Afonso Henriques desposar Mafalda e as negociações teriam de ser rápidas. Só assim pode aspirar a ser rei, confirmou meu pai». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT