O Massacre dos Templários. Roma, 1144
«Naquele novo ano, para azar de
Chamoa, os papas mudaram ao ritmo das estações do ano. Celestino II, eleito no
Outono, não durou sequer até ao final do Inverno. Se, em Dezembro anterior, a publicação
da sua bula Clavis Regni nos dera novo alento, o papa prometera reconhecer
Afonso Henriques como rei, em troca do recebimento anual de quatro onças de
ouro, em Março a sua morte súbita desanimou-nos. A embirração que o desaparecido
pontífice devotava à casa da Sabóia não era partilhada pelo sucessor, Lúcio II,
que logo exigiu a renovação das negociações para o matrimónio com Mafalda da Sabóia,
obrigando o arcebispo de Braga, João Peculiar, a apresentar-se em Roma para receber
instruções. Apesar de incomodado com mais uma súbita mudança, Afonso Henriques sabia
que a diplomacia religiosa se mantinha essencial. Nesses dias, meus queridos filhos
e netos, o reino de Portugal era ainda uma entidade embrionária e tornava-se
absolutamente imperativo convencer o novo papa da sua viabilidade e legitimidade.
Por isso, a Roma não foi apenas o arcebispo Peculiar, mas também meu pai, o mordomo
do novo reino.
Dias antes de partir, Egas Moniz desafiou-me
a acompanhá-lo, coisa que minha mulher, Maria Gomes, apoiou, mas que Chamoa
obviamente não aprovou. Desapontada, nem sequer veio despedir-se e segui para
Roma com um sentimento misto. Por um lado, estava entusiasmado com a minha primeira
grande viagem, ia conhecer a cidade onde morrera São Pedro e também viajar até Dijon
e Cluny, pois meu pai desejava visitar o abade Bernardo de Claraval, um dos mais
eminentes religiosos da Cristandade e patrono dos templários. Por outro lado, sentia
alguma inquietação. Já imaginando de novo um futuro desagradável onde nunca seria
rainha, Chamoa poderia espalhar a intriga de Compostela, aproveitando o vácuo deixado
pela partida de Egas Moniz, única testemunha viva da cabala.
Temendo tal risco, pedi a Pêro Pais
que convencesse a mãe a nada dizer sobre assunto tão delicado. Melhor seria que
Chamoa esperasse pelo meu regresso, pois era incerto o resultado final daquelas
negociações matrimoniais, que tantos avanços e recuos já tinham sofrido. Parti descansado,
prometeu-me Pêro Pais. Confiei naquele rapaz, que já era um homem aos dezassete
anos, e embarquei, em Montemor, num barco que subiu até Compostela, dobrou o cabo
Finisterra e rumou à Vascónia, onde desembarcámos. Daí, seguimos a cavalo até Barcelona
e nessa bela cidade tomámos nova embarcação, que nos fez chegar a Roma em poucos
dias. Devo dizer que a cidade papal me causou forte impressão. Não tanto pelas múltiplas
igrejas, mas sobretudo pelos vestígios imponentes da civilização romana que ainda
existiam. No dia em que João Peculiar e meu pai foram recebidos pelo papa, na Igreja
de São Pedro, visitei o Coliseu de Roma e foi junto a esse monumento gigante que
senti a pequenez da minha vida e das malícias humanas que me consumiam.
Aquelas espantosas e velhas pedras
iá haviam visto muito, tanta vileza humana ali despontara ou perecera, e eu preocupado
com a rocambolesca intriga de Compostela! Que interessavam as acusações torpes dos
nossos inimigos, que duravam desde os tempos da malfadada dona Urraca? A ideia de
que Afonso Henriques podia ter sido trocado era uma enorme canalhice, meu pai e
minha mãe tinham sido extremamente dedicados ao menino desde cedo, só mentes diabólicas
podiam acreditar em tal patranha! Meu pai sempre fora um homem de princípios, era
impensável que tivesse patrocinado uma intrujice tão requintada, e foi com esse
pensamento solidificado dentro do meu coração que regressei para junto dele. No
dia seguinte, partimos em direcção a Sabóia. O papa Lúcio II fora claro como água:
era essencial Afonso Henriques desposar Mafalda e as negociações teriam de ser rápidas.
Só assim pode aspirar a ser rei, confirmou meu pai». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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