As
Princesas de Córdova. Silves, 1145
«Quase todos os acontecimentos
relevantes passados durante este novo ano não foram presenciados por mim. Para os
relatar, queridos filhos e netos, recorro às narrativas que me fizeram a minha cunhada
Chamoa, Mem e também a princesa Zaida. São as descrições deles que aqui reproduzo,
para que possais perceber o quanto os nossos sucessos militares, obtidos em Portugal
nos anos seguintes, foram uma consequência directa da forma brutal e
vertiginosa como a Andaluzia muçulmana se destruiu a si própria. Sentada na varanda
do seu quarto, no palácio de Silves, Zaida constatou que os preparativos para a
guerra tinham uma única virtude: haviam afrouxado a vigilância do marido. Desde
que Mem a salvara dos assassins que Ibn Qasi ficara em alarido por temer
pela vida dela e de Maryam, mas também por invejar o estatuto de salvador da
princesa que o almocreve alcançara. Mais de ano e meio passara e Qasi não
esquecera o que vira: Mem junto à cama dela, sentinela única em defesa de
Zaida. Receoso, proibira-a de aproximar-se do pombal e de passear sozinha.
Em parte, Zaida compreendia, os feddayins
tinham tentado eliminá-los. Mas não se tratava só disso. Ibn Qasi mudara, a
ambição transformara-o, a religião exigira-lhe novas regras, o domínio da mulher
era uma imposição dos almóadas de Marrocos, que não aceitavam que uma esposa se
desse a terceiros. Na Córdova antiga e gloriosa, onde a sua mãe, Zulmira, crescera,
as mulheres tinham direito aos mesmos prazeres do que os homens. A fidelidade
não era exigida, nem a uns nem a outros; as brincadeiras com homens ou mulheres
eram consideradas saudáveis e até necessárias, para que a trepidação carnal não
baralhasse o espírito. Um casamento era apenas uma união legal, a formação de
uma família, a transmissão de riquezas e propriedades. Não ficava em causa por se
rebolar com alguém numa cama! Por isso, os homens tinham haréns e as mulheres dos
sultões se banhavam com serviçais negros nas piscinas, como no início do belo e
antigo livro das Mil e Uma Noites.
A leitura que Ibn Qasi e os almóadas
faziam do Corão impunha normas duras e opressivas só compreensíveis para gente oriunda
dos desertos africanos, inculta e bruta. Mas eles tinham poder, tanto poder! E,
Ibn Qasi estava a segui-los cegamente, até a bela cidade de Silves já se ressentia.
Os poetas fugiam e as mulheres já usavam véu, escondiam a cara e diziam que sim
a tudo o que os maridos impunham. Mas o aproximar da guerra libertara um pouco a
pressão em que Zaida vivera nos últimos tempos. A agitação das tropas e o planeamento
das operações haviam distraído Ibn Qasi, que diminuíra a vigilância apertada imposta
à princesa. Por isso, lhe chegou aquele pombo, com a mensagem de Afonso Henriques,
onde este avisava que um padre, Mem e Chamoa haviam sido levados por Ismar para
Córdova, onde já se encontravam também Abu Zhakaria, governador de Santarém, e
Fátima, a sua irmã! A voz da mãe ecoava-lhe nos ouvidos, enquanto observava a
pequena Maryam a brincar com as bonecas. Iria a filha ouvi-la também, um dia que
ela morresse? Zaida não sabia, ninguém conseguia entrar na mente de outra pessoa,
o pensamento e a dor eram impossíveis de partilhar». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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