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Tanto a
decoração como a epígrafe, para além de dignificarem e individualizarem os
monumentos funerários, também promoviam a preservação da memória linhagística,
segundo o princípio de que a recordação do passado era uma condição de
legitimação do presente. Por outro lado, dados os interesses patrimoniais
detidos pela fidalguia nos mosteiros onde os seus familiares se encontravam
sepultados, o registo identificativo dos túmulos servia para reiterar junto da
comunidade monástica os direitos que sobre ela exercia o grupo familiar do
defunto, ao mesmo tempo que a existência nos mosteiros patronais de um panteão
linhagístico, originava uma promoção prestigiante para os membros da respectiva
congregação monástica, ao mesmo tempo que trazia consigo doações testamentárias
que não eram de desprezar, A inscrição dos brasões dos falecidos nos monumentos
funerários constituía, igualmente, um sinal eficaz da personalização dos
monumentos funerários, prolongando-se a sua função identificatória até aos dias
de hoje. Na verdade, vários foram os túmulos que puderam ser identificados
devidos aos escudos-de-armas nele ostentados. Neste sentido, Augusto Ferreira Amaral
afirma que as primeiras manifestações de brasões tumulares em Portugal surgiram
em meados do século XIII, destacando, entre os primeiros exemplares, os túmulos
de Paio Guterres Cunha, hoje desaparecido, que se encontrava na galilé da
igreja de S. Salvador do Souto e o de Tibúrcio que se encontrava na Sé Velha de
Coimbra.
De uma forma
geral, a codificação heráldica não só individualizava o possuidor das armas,
como o filiava na família portadora do escudo-de-armas, constituindo, assim,
uma forma de integração linhagística. Um exemplo particularmente esclarecedor,
a que nos referiremos mais tarde, é o túmulo quatrocentista de Lopo Dias
Azevedo, nele surgindo um brasão onde a águia, o símbolo heráldico dos
Azevedos, figura ao centro, enquanto na bordadura se representam leões, os
animais representativos do escudo-de-armas da família dos Coelhos, de onde era
originária a mãe do defunto. Ora, significativamente, foi esta representação
heráldica que permitiu a moderna identificação do nobre tumulado. Torna-se,
assim, patente como os brasões eficazmente aliam a função identificatória do
indivíduo sepultado à da sua integração num determinado grupo linhagístico. No
caso do Entre-Douro-e-Minho, a presença de brasões remonta à segunda metade do
século XIII, começando-se a detectar a partir dos finais do século XIV, a
presença de timbres coroando os brasões.
Porém, a forma mais explícita de
personalização dos túmulos foi o jacente, sendo a partir dele que se expressa,
mais exemplarmente, o propósito de “cunhar” o túmulo com uma explícita
referência ao defunto. Na verdade o jacente procura fornecer uma representação
física do morto. Segundo Mário Jorge Barroca, ele constitui uma manifestação
essencialmente aristocrática e masculina, resultando da importação de uma
moda estrangeira. Ora, se o primeiro jacente conhecido em Portugal se
encontra em Alcobaça e remonta aos finais do século XIII, nele se representando
dona Urraca, a mulher de Afonso II, no nosso país, ele apenas se institui como
uma manifestação típica durante o século XIV, altura em que se assiste a uma
verdadeira explosão na criação deste tipo de monumento funerário, o que se
verifica logo na primeira metade do século. No Entre-Douro-e-Minho, o mais
antigo jacente conhecido é o de Rodrigo Sanches, uma obra efectuada por
escultores conimbricenses em meados do século XIII.
O jacente apresenta uma característica
de primordial interesse a nível simbólico, dada a representação escultória do
defunto se encontrar na tampa do túmulo, ou seja, virado para o Céu, para o
Eterno. Assim, se as representações figurativas nos laterais do túmulo surgem
numa posição que permite aos vivos a sua leitura e descodificação, o jacente,
colocado em cima do túmulo, oferece uma figuração orientada para o Celeste. A
representação do jacente, tanto comporta uma figuração destinada à visão da
Corte Celestial, como procura sugerir o momento da preparação do defunto para o
julgamento perante as potências divinas, para quem apela. Como exemplo desta
topografia simbólica do túmulo, registamos, no Entre-Douro-e-Minho, o monumento
funerário de Álvaro Gonçalves Freitas, um fidalgo que foi escudeiro, desembargador
e vedor da fazenda de João I e que faleceu entre os anos de 1418 e 1420. No seu
túmulo, situado na capela de S. Brás, hoje integrada no Museu Alberto Sampaio
em Guimarães, encontram-se duas representações identificatórias. No jacente,
fez-se figurar ostentando o hábito de franciscano (Isabel Castro Pina salienta
o facto dos membros da nobreza, nos séculos XIV e XV, elegerem,
maioritariamente, os conventos mendicantes para neles instalarem as suas
sepulturas, como se lhes, franciscanos e dominicanos, estivesse atribuído um
papel especial na intercessão pelos defuntos). No lateral maior do arcaz
encontram-se dois brasões. Assim, se para o mundo terreno dos vivos, o nobre se
identifica pela sua filiação linhagística e respectiva posição social, perante
Deus surge despojado das suas funções terrenas, optando por se representar de
forma a sugerir uma ligação pessoal e íntima com o divino, aqui simbolizada
pelo hábito franciscano. Tendo ou não sido por ela guiado durante a sua vida,
escolheu uma imagem de devoção perante Deus no momento em que se preparou para
a morte. No entanto, conhecemos outros desígnios para as representações
utilizadas noutros jacentes. Referimo-nos, por exemplo, a um sarcófago dos
finais do século XIII, que se encontra na igreja do antigo Mosteiro de
Pombeiro. Num dos seus laterais vê-se um cavaleiro na sua montada, estando em
posição de combate e com a lança em riste, associando-se a tal figuração o seu
escudo-de-armas. Ora, no respectivo jacente, o cavaleiro apresenta-se em vestes
civis, sendo visíveis as suas esporas e uma espada onde figura o respectivo
brasão». In Pedro Chambel, Marcas do
Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária
Medieval do Entre-Douro-e-Minho, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 1, N
º 1, 2005, ISSN 1646-740X.
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