«(…) Mas a avó mantinha-a sob o
seu domínio e o único objectivo na vida da tia Cissie era o de tomar conta da
Mater. Os clarões verdes de ódio infernal da tia Cissie dirigiam-se, por vezes,
contra tudo o que era jovem. Coitada dela, rezava e procurava conseguir o perdão
dos céus. Mas aquilo que lhe fora feito ela não conseguia perdoar e o vitríolo
corria-lhe nas veias, de vez em quando. Não seria o mesmo se a Mater fosse uma
alma bondosa e amável. Não era esse o caso. Só por astúcia é que revelava
aquelas qualidades. Lentamente, as raparigas aperceberam-se desse facto. Por
debaixo da touca de renda, fora de moda, por debaixo do seu cabelo prateado,
por debaixo da seda preta do seu corpo velho e dobrado para a frente, esta
mulher tinha um coração manhoso, sempre buscando o seu próprio poder feminino.
Por intermédio das fraquezas dos homens envelhecidos e cansados que ela criara,
mantinha o seu poder, enquanto os anos passavam, dos setenta para os oitenta e
dos oitenta para o salto seguinte, a caminho dos noventa. Isto porque na
família havia toda uma tradição de lealdade; lealdade de uns para com os outros
e especialmente para com a Mater. A Mater, claro, era o centro da família. A
família era uma extensão do seu próprio ego. Muito naturalmente, cobria-a com o
seu poder. Os filhos e as filhas, fracos e desunidos, eram, naturalmente,
leais. E fora da família o que é que existia para todos eles, além do perigo,
dos insultos e da ignomínia? Como se o pároco não tivesse já experimentado tudo
isso, no seu casamento! Portanto, agora cuidado! Cautela e lealdade enfrentando
o mundo! Que surjam todos os ódios e todos os atritos que quiserem no seio da
família. Para o mundo exterior, apenas um teimoso muro de união!
Porém, foi apenas quando as
raparigas regressaram finalmente a casa, vindas da escola, que sentiram todo o
peso da querida e velha mão da avó sobre as suas vidas. Lucille tinha agora
quase vinte e um anos e Yvette dezanove. Haviam frequentado uma boa escola para
raparigas, depois tinham passado um ano num colégio em Lausana e eram
exactamente aquilo que é normal: criaturas jovens e altas, com rostos frescos e
sensíveis, cabelos cortados curtos, maneiras varonis e despreocupadas. O que é
tão aborrecido em Papplewick, disse Yvette, quando ambas se encontravam a bordo
do barco que atravessa o canal da Mancha, vendo as cinzentas falésias de Dover
a aproximarem-se, é o facto de não haver lá homens. Por que é que o pai não tem
bons companheiros como amigos? Quanto ao tio Fred, ele é o cúmulo! Oh, nunca se
sabe o que é que poderá acontecer, disse Lucille, mais filosófica.
Sabes perfeitamente com o que podes contar,
retorquiu Yvette. Coro aos domingos, e eu odeio coros mistos! As vozes dos rapazes
são amorosas, quando não há mulheres. A Escola Dominical, a Sociedade Feminina
de Socorro Mútuo, as reuniões sociais e todas aquelas velhas e queridas almas a
perguntarem pela saúde da avó! Não há um rapaz decente muitos quilómetros à volta.
Oh, não sei!, disse Lucilie. Temos sempre de contar com os Framleys. E sabes
bem que Gerry Somercotes te adora.
Oh, mas eu odeio tipos que me
adoram!, gritou Yvette, erguendo o seu delicado nariz. Eles aborrecem-me. Não
nos largam! Então, o que é que queres, se não suportas que te adorem? Acho que
está perfeitamente certo que sejamos adoradas. Sabes que nunca virás a casar
com eles, portanto, por que é que não havemos de deixar que continuem a
adorar-nos, se isso os diverte? Oh, mas eu quero casar-me!, exclamou Yvette. Então,
nesse caso, deixa que eles continuem a adorar-te até que encontres um com quem
te seja possível casares-te. Dessa maneira, nunca! Nada me irrita mais do que
um tipo adorador. Aborrecem-me tanto! Fazem com que me sinta abominável. Oh,
também a mim, quando se tornam insistentes. Mas, à distância, penso que são
muito agradáveis. Gostaria de me apaixonar violentamente. É natural! Pois eu,
nunca! Odiaria tal coisa. E, provavelmente, o mesmo sucederia contigo, se na
verdade isso te viesse a acontecer. No fim de contas, temos de assentar um
pouco, antes de sabermos o que é que queremos.
Mas
não te horroriza ter de voltar a Papplewick?, perguntou Yvette, erguendo o seu
delicado e jovem nariz. Não, nem por isso. E penso que nos vamos sentir muito aborrecidas.
Gostaria que o pai arranjasse um carro. Creio que teremos de pôr cá fora as
velhas bicicletas. Não gostavas de ir até ao pântano de Tansy? Oh, adoraria!
Mas é um esforço terrível empurrar aquelas bicicletas velhas pelas colinas
acima. O navio aproximava-se das falésias cinzentas. Era Verão, mas o dia
estava carregado. As duas raparigas usavam os seus casacos com as golas de pele
erguidas e uns pequeninos chapelinhos à moda, puxados para cima das orelhas.
Altas, elegantes, de rostos frescos, inocentes, mas confiantes, demasiado confiantes,
na sua arrogância de meninas de escola, tinham um aspecto tão terrivelmente
inglês! Pareciam tão livres, mas, na verdade, por dentro de si próprias,
estavam tão emaranhadas e amarradas. Pareciam tão espirituosas e tão
anticonvencionais e eram, na realidade, tão convencionais, como se tivessem
fechado portas dentro de si mesmas. Pareciam-se com veleiros, altos e elegantes,
jovens e audaciosos, deslizando para fora do porto em direcção ao mar alto da
vida. Mas eram, na realidade, duas pobres vidas sem rumo, deslocando-se de um
ancoradouro para outro». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926,
Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN
978-972-370-164-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT