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A última viagem de Afonso foi, como referimos, feita no âmbito da missão militar
da tomada de Alcácer Ceguer. A frota que organizou no Porto reuniu-se em Lagos
à do monarca e daí seguiu para a costa marroquina onde, no início de Outubro de
1458, aportou a Alcácer. Uma vez que o rei foi depois a Ceuta é provável que o
conde de Ourém o tenha acompanhado, avistando, assim, pela segunda vez aquela
cidade. Por tudo quanto dissemos, parece-nos claro que Afonso terá
contactado com o que de melhor, mais interessante e original se fazia na época
que, curiosamente, tomava feição diferente, caso se tratasse da Flandres ou de
Itália, tendo estado frente a estes dois mundos, cujas realizações, com
intenções semelhantes, se materializaram nestas duas culturas que marcaram a
vanguarda artística do século XV, de forma completamente diversa.
Ainda em Portugal, o 4º conde de Ourém deverá ter conhecido Jan van Eyck,
que acompanhou a embaixada borgonhesa a Lisboa em 1428-29. O célebre pintor
esteve em Avis, junto da corte, nos primeiros meses de 1429, com a missão de
retratar a Infanta dona Isabel. D. Afonso também lá se encontrava. É portanto
quase certo que se terão cruzado. Será que o viu trabalhar? Terá visto obras
suas? Na Flandres terá tido essa oportunidade. Lá van Eyck era um artista
reconhecido – era já pintor da corte – e iniciava as primeiras experiências que
o levariam à liderança do movimento de inovação pictórica da pintura flamenga (há conhecimento
de que foram realizados dois registos da princesa mas o paradeiro dos mesmos é
desconhecido; conhecem-se hipotéticas reproduções daqueles desenhos, não se
sabendo se terá sido pintado algum retrato a óleo). E das inúmeras personalidades que Afonso
contactou no âmbito desta embaixada, destacamos as figuras de Baudoin de
Lannoy, senhor de Molembaiz e governador de Lille, um dos embaixadores que
vieram a Lisboa em 1428-29 para negociar com João I o acordo de casamento, a
quem Van Eyck pintou um retrato em 1432 (Retrato de Boudoin de Lannoy) e Nicolas
Rolim, destacado nobre próximo de Filipe-o-Bom – foi uma das suas testemunhas
de casamento, que chegou a chanceler da Borgonha e que patrocinou o famoso
retábulo A Virgem do Chanceller Rolim, também
pintado por van Eyck em 1451, destinado à capela da sua família na Igreja de
Notre Dame-du-Chastel em Autum. Estes nobres terão sido talvez dos primeiros a
encarnar o espírito mecenático que se generalizou mais tarde no meio
aristocrático. De facto, o papa Nicolau V, em 1450, nomeou Rolim patrono
oficial daquela igreja, tantas tinham sido as dádivas artísticas feitas pelo
chanceler. É assim muito provável que o conde de Ourém tenha visto o retrato do
embaixador flamengo que data precisamente de 1432 e, apesar da efectivação da
encomenda do Chanceler Rolim se ter verificado muito posteriormente à sua
estada na Borgonha, cremos que a sensibilidade, o espírito e o ambiente que se
vivia na Flandres
nos anos 30 de quatrocentos, terão marcado definitivamente o seu gosto.
Quanto
à arquitectura, a Flandres apresentava nos seus edifícios uma feição semelhante
à que se usava em Portugal (já tardo-gótica) mas com algumas diferenças
significativas: de escala, muito maior, e de tipologia dado que, para além dos
edifícios religiosos, muitos eram os de carácter civil igualmente grandiosos e
belos que marcavam Gant ou Bruges, de entre os quais já deveriam destacar-se as
sedes comunais, situadas na praça principal ou paços régios e nobres,
luxuosamente decorados com panos e argentarias várias.
Nos
alvores de um novo tempo Afonso esteve precisamente nas principais cidades dos
dois territórios, Flandres e península itálica, onde novas ideias e formas
começavam a florescer. As viagens que empreendeu, foram feitas em anos de clara
mudança, difíceis até de classificar, 1430 na Flandres, 1436 na Toscânia ou
1452 em Roma, constituem precisamente pontos de viragem estéticos. Recordemos a
este propósito que o Cordeiro Místico de Van Eyck foi colocado na catedral
de S. João (actual S. Bavão) em 1432; que a cúpula do Duomo de Florença foi
inaugurada pelo papa Eugénio IV em 1436; que data de 1450
a decisão do papa Nicolau V de reformular a Basílica de
S. Pedro em Roma, fazendo a encomenda do projecto a Leon Batista Alberti,
remodelação aliás integrada no grande projecto de modernização da cidade; e que
no ano de 1452 aquele arquitecto publicou o tratado De re aedificatoria.
Fácil é fazer corresponder estes factos às passagens que o 4º conde de Ourém
fez pela Flandres, Florença e Roma, que nestes momentos cruciais, como é
característico de tempos de mudança, deveriam fervilhar de novidades,
contestação e discussão. Feliz coincidência ou talvez não, o facto é que 100
anos antes da divulgação de um novo ideário estético que só chegou a Portugal
ia já avançado o século XVI, Afonso conheceu-o, observou-o. E, tal fortuna
que só o acaso pode explicar, proporcionou-lhe o enriquecimento visual e
estético que, junto à cultura e erudição de que era detentor e que soube
cultivar e desenvolver, possibilitaram a edificação nos seus domínios de uma
obra inovadora e marcante, digna da sua estatura intelectual e do seu singular
estatuto nobre». In Alexandre Leal Barradas, D. Afonso, 4º conde de Ourém, Revista
Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006,
ISSN 1646-740X.
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