Molière
e a Toutinegra
«(…) Ponho-me a pensar nos pares
célebres que enchem a história e a literatura,
Paulo e Virgínia, Heitor e Andrómaca,
Otelo e Desdémona, Pedro e Inês, e tantos, tantos mais, sem esquecer aqueles
outros ajuntamentos e conúbios que a natureza apenas suporta nas mitologias,
como os de Leda e o Cisne, de Europa e o Touro, ponho-me a pensar em tudo isto
e sorrio sozinho, enquanto olho pela janela da minha casa o diálogo de planos
que os telhados vão alternando pela encosta. Tenho na lembrança uma outra
janela, estreita, metida entre esconsos que mal me deixavam olhar a rua (sexto
andar, água-furtada, perto do céu), donde, por todo o tempo que ali vivi, pouco
mais podia ver que telhados e nuvens, mais um sol que fazia todos os dias o
mesmo caminho e que deslocava, de um lado para o outro, até subir a parede e
desaparecer, uma faixa de luz sobre o chão esfregado onde eu brincava.
Conto isto em períodos longos,
respirando profundamente para mergulhar no passado fugidio da infância, onde as
verdades se diluem e resplendem como moedas de ouro deixadas entre limos. Foi
naquela cadeira que pousei o pacotinho de pastilhas de chocolate que a senhora
dona Albertina me deu na cozinha onde eu a visitava. Também podia andar pelo
jardim, que era pequeno e húmido, com as áleas cheias de musgo e terriço, por
onde se arrastavam, vagarosos e cinzentos, com muitas perninhas esbranquiçadas,
quase translúcidas, os bichos-de-conta que tantas vezes não queriam enrolar-se,
com grande escândalo da minha confiança nos instintos naturais que os mandavam
fazer-se em bola à mais pequena carícia no dorso couraçado de anéis. E noite
dentro me levantei da cama devagar, para não acordar meus pais que dormiam no
mesmo quarto, e fui buscar, apalpando a escuridão que me cobria de teias de
aranha as mãos e o rosto, o pacote das pastilhas de chocolate, e em três passos
furtivos, com o coração a bater muito, voltei para a cama estreita, e entre os
lençóis escorreguei, feliz, a comer, até que adormeci. Quando acordei de manhã,
tinha esborrachado debaixo de mim o que restava do pacote, pegajoso e mole com
o calor da cama. Chorei de desgosto, mas minha mãe não me bateu, e ainda hoje lhe
beijo as mãos por isso.
Tinha oito anos e já sabia ler
muito bem. Escrever, não tanto, mas fazia poucos erros para a idade, só a
caligrafia era má, e assim veio a ficar sempre. Escrevia naqueles antigos cadernos
de formosas letras desenhadas, e repetia-as com milagres de atenção, mas no fim
da linha já começava a inventar um alfabeto novo, que nunca cheguei a organizar
completamente. Mas lia muito bem os jornais e sabia tudo quanto se passava no
mundo. Julgava eu que era tudo.
Também
tinha livros: havia um guia de conversação de português-francês, que ali fora
parar não sei como, e cujas páginas, divididas em três partes, eram para mim um
enigma que apenas parcialmente decifrava, pois tinha à esquerda uma coluna que
eu podia entender, em português, depois outra em francês, que era como chinês,
e finalmente a pronúncia figurada, muito pior do que todos os criptogramas do
mundo. Havia outro livro, um só, muito grande, encadernado de azul, que eu
pousava largamente em cima dos joelhos para poder lê-lo, e no qual se narravam
profusamente as aventuras românticas duma menina pobre que vivia num moinho e
que era tão bela que lhe chamavam a Toutinegra. Por isso é que o livro se
intitulava A Toutinegra do Moinho: o autor, se a memória não me engana, era um Émile
de Richebourg, homem das Arábias para histórias de chorar. E o livro, quando não
estava em uso, passava o tempo numa gaveta da cómoda, embrulhado em papel de
seda, e largava, ao ser retirado, um cheiro de naftalina que provocava
tonturas. Minha mãe entregava-mo com unção e mil recomendações. Talvez venha daí
o respeito supersticioso que ainda hoje tenho pelos livros: não suporto que os
dobrem, os risquem, os maltratem na minha frente.
Durante muito tempo (dias? semanas?
meses? que tamanho tem o tempo na infância?) me intrigou o guia de conversação.
Lia nele coisas que me agradavam, que me divertiam: casos passados em
caminhos-de-ferro e diligências, cavalos cansados, bagagens perdidas, rodas que
se quebravam em sítios descampados, chegadas a estalagens, quartos que era
preciso aquecer com grandes fogos de lenha. Apesar de não encontrar casos
destes entre a casa e a escola, eu achava que devia ser bom viver assim, com
tantos imprevistos da fortuna.
Mas o que mais me fascinava eram
uns diálogos às vezes compassados e solenes, outras vezes vivos e rápidos como
o reflexo do sol varrido por uma janela que se fecha. Quando tal acontecia,
punha-me a sorrir de uma certa maneira que só agora entendo: sorria como o
adulto que ainda estava longe. Foi muitos anos depois que descobri que afinal já
conhecia Molière desde a água-furtada: conversara comigo, fora meu guia de
leitura, enquanto a Toutinegra dormia divorciada entre dois lençóis, na gaveta
da cómoda, com cheiro a naftalina e a tempo não de todo perdido». In
José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho,
1998, ISBN 978-972-212-339-6.
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