«O Ocidente medieval cristão conheceu
profundas mutações durante os séculos XII e XIII. Se as manifestações desse
processo se deram de forma mais explícita a nível das condições de vida
material das populações, também se assistiu, paralelamente, a uma predisposição
mental que, subterraneamente, impulsionou e acompanhou as dinâmicas
sócio-económicas ligadas ao renascimento urbano, iniciado ainda durante o
século XI, e que se afirmou nas duas seguintes centúrias. Uma nova concepção do
mundo acompanhou as transformações das condições materiais do homem medieval,
influenciando-as, e por elas sendo influenciada. As alterações na forma de
conceber o mundo do invisível e das relações entre mortos e vivos acompanharam este
processo. Fruto de um fenómeno de longa duração, emergiu uma nova concepção da
morte, baseada na consciencialização de que ela era um acto individualizado,
com que os homens se confrontavam no momento de passagem do mundo terreno para
o do Além, mediante um julgamento que iria determinar o seu futuro post-mortem.
Para tal, muito contribuiu a aceitação,
por parte da hierarquia religiosa, da concepção teológica da existência do
Purgatório durante o século XII, levando ao estabelecimento de uma verdadeira geografia
do Além, segundo um processo estudado por Jacques Le Goff em relação ao
conjunto da Cristandade, e por José Mattoso em relação ao Ocidente hispânico
cristão. Contudo, se as novas concepções do mundo invisível não surgiram de
forma sincrónica para todo o Ocidente medieval, elas foram-se,
progressivamente, uniformizando. Neste sentido, no livro sinodal de Alba,
elaborado em 1410 e estudado por Maria do Rosário Bastos, encontram-se já
plenamente sistematizados os lugares de destino reservados às almas dos mortos,
ou sejam: o Paraíso, o limbo dos Padres (encerrado após a vinda de Cristo), o
limbo das crianças, o Purgatório e o Inferno.
A visão do mundo post-mortem reflectiu-se na vida
do homem medieval. O momento decisivo do julgamento divino após a morte,
associado, agora, ao Julgamento Final da Humanidade, levou ao surgimento de um
conjunto de práticas, que proporcionassem aos homens a segurança da protecção
das potências do Além. Assiste-se, assim, ao emergir de rituais preparatórios
do momento da morte. Era necessário que esta fosse exemplar e que todos
estivessem preparados para o incerto momento da passagem para o mundo do
invisível. Nos testamentos surgem, então, especificados os actos que deveriam
ser efectuados pelos vivos, a fim de garantir a salvação da alma do morto ou o
apaziguamento das suas penas. A visão do mundo post-mortem reflectiu-se na vida do homem medieval. O
momento decisivo do julgamento divino após a morte, associado, agora, ao
Julgamento Final da Humanidade, levou ao surgimento de um conjunto de práticas,
que proporcionassem aos homens a segurança da protecção das potências do Além.
Assiste-se, assim, ao emergir de rituais preparatórios do momento da morte. Era
necessário que esta fosse exemplar e que todos estivessem preparados para o
incerto momento da passagem para o mundo do invisível. Nos testamentos surgem,
então, especificados os actos que deveriam ser efectuados pelos vivos, a fim de
garantir a salvação da alma do morto ou o apaziguamento das suas penas.
Neste sentido, tudo é cuidadosamente
pensado quanto ao processo de elaboração da última morada dos restos corpóreos.
Monumento, simultaneamente, retrospectivo e prospectivo, nele se pretende
representar a imagem que cada homem quer transmitir acerca do que foi a sua
vida, e sobre o local desejado para o repouso da alma, a Corte Celestial
destinada aos eleitos. O monumento funerário integra-se, assim,
progressivamente, na acepção do que Jacques Le Goff denominou de monumento/documento. Importante,
não era, porém, apenas o túmulo, mas também o lugar onde ele iria permanecer.
Dentro ou adscrito a uma igreja, um mosteiro, ou, mais tardiamente, a uma
catedral, e, nestes templos, em espaços destinados ao apaziguamento das
preocupações dos vivos, procurando os locais eleitos pelos santos homens que
deveriam proteger o indivíduo e encaminhá-lo para o reino dos venturosos. Nas
instituições religiosas constroem-se, então, arcossólios e abrem-se capelas,
com decorações murais e escultórias, onde os túmulos eram depositados segundo
um plano minuciosamente escolhido. Nada devia ser deixado ao arbítrio, visto
assim o exigir a segurança da vida eterna». In Pedro Chambel, Marcas do Quotidiano nos Monumentos
Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do
Entre-Douro-e-Minho, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 1, N º 1, 2005,
ISSN 1646-740X.
Cortesia de
RMedievalista/JDACT