«(…) Neste último parágrafo o abade de Claraval parece
falar não apenas para os homens da igreja mas também, e de modo directo, para
os próprios guerreiros. Aliás, a guerra é, para ele, desenvolvida em vários
locais. Um desses lugares de combate é o mosteiro, outro é o reduto defensivo,
o castelo. Nas palavras de J. M. de la Torre,
a liturgia do monge, segundo São Bernardo, (tal como a do cavaleiro), deve
ser uma busca autêntica, contínua e perseverante, numa atmosfera de combate.
A própria formação do abade de Claraval, iniciado no espírito da cavalaria,
projectando um ideal de amor cortês através do culto da Virgem Maria, reflecte
uma influência dos mitos e lendas do ciclo bretão e arturiano. Para René
Guénon, ele é o protótipo de Galaaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói
vitorioso da “demanda do Santo Graal. São Bernardo, monge da contemplação e
da acção, inspirador não apenas da ordem cisterciense, mas também do Templo,
assume uma dupla missão, quer no plano espiritual e religioso, contribuindo
para uma Igreja mais purificada e ascética, quer no plano temporal, através do
ideal templário e da pregação de uma nova Cruzada, para o Oriente e para o
Ocidente peninsular, em lugares onde se firmava o Islão.
Neste
ambiente de luta espiritual, compreende-se o empenho que o abade de Claraval
demonstra em encorajar a Ordem dos Templários, que Hugues de Payns, seu primo,
tinha fundado, uma estrutura militar de alma cisterciense, constituída por
profissionais de armas encarregados da defesa dos Lugares Santos, juntando o
combate com a oração. Através dela o abade de Claraval não pretende derramar o
sangue dos opositores da fé cristã, mas atender à defesa da herança espiritual
da Cristandade, a Terra Santa, ameaçada pelos ataques muçulmanos, impede que
essa defesa se faça sem acudir às armas. Esta doutrina do perigo latente no
lugar onde Cristo venceu pelo seu sangue levou São Bernardo a esgrimir com a
sua pena o Elogio da Nova Milícia onde reconhece que a ele próprio, como
religioso, lhe está vedado o emprego das armas. O carácter castrense dos
Templários, a militia por excelência, traduziu-se numa nova atitude
perante a guerra, associando-a directamente a uma forma diferente de encarar a
vida monástica. Até à sua formação, as ordens religiosas cristãs no Oriente não
se dedicavam a funções militares, estando a sua acção restrita ao apoio a
peregrinos. O novo instituto nasce com o objectivo claro de defender o Reino
Latino de Jerusalém, numa vivência pautada por um clima de guerra permanente
contra os seus inimigos. Nesta conjuntura, após a queda de Edessa, em 1144,
deve ser igualmente destacado o empenhamento pessoal do abade de Claraval na
Segunda Cruzada. Esta nova acção da Cristandade, a que muitos chamam a Cruzada
cisterciense, foi apresentada por São Bernardo como uma oportunidade
especial de salvação para aqueles que tomavam a cruz, conseguindo transformar
as reticências iniciais da aristocracia naquilo a que André Vauchez designa por
uma catarse colectiva, uma aventura do espírito, uma peregrinação
santificadora.
No Tratado
sobre as glórias da nova milícia, poderoso opúsculo apologético e
teológico, São Bernardo utiliza uma linguagem crítica virulenta quando descreve
os soldados orgulhosos e bem aparelhados, em contraste com os novos monges
soldados, pobres, castos e obedientes. Encontramos de um lado esse exército que
não é uma militia, mas antes
uma malitia, feita de decadentes guerreiros de cabeleiras longas, de
escudos pintados e de esporas de ouro. Ao invés, os cavaleiros de Cristo, que
nada possuem de próprio, que nunca se aprumam, negligenciando a barba e o
cabelo, cobertos de pó, negros do sol que os abrasa e da malha que os protege.
Também é interessante verificar que, nessa obra, São Bernardo compõe, como
refere Jean Leclercq, um guia para os viajantes na Terra Santa: mais do que
animar os guerreiros, ele conduz uma peregrinação. Ele, ao viajar por toda
a Europa, onde a sua presença era muitas vezes requerida, sempre foi, aliás, um
peregrino pela Fé, um homo viator. Segundo a sua descrição, não
confirmada na sua totalidade, os cavaleiros eram responsáveis por quase todos
os lugares sagrados para os cristãos: o Templo de Jerusalém, Belém, Nazaré, o
monte das Oliveiras, o vale de Josaphat, o Jordão, o Calvário e o Sepulcro.
Sabe-se, no entanto, que a rota entre Jerusalém e Jericó, assim como o lugar do
baptismo de Cristo no rio Jordão, estavam muito bem defendidos pelos Templários.
Com um estilo literário pujante, São Bernardo opõe a nova cavalaria, os
Templários, à cavalaria secular, isto é, a todas as outras. Esta nova cavalaria
conduz um duplo combate, contra a carne e contra os espíritos da malícia
espalhados nos ares. Para o novo cavaleiro, Cristo é a sua vida; Cristo
é a recompensa da sua morte. Percebemos, assim, que o abade de Claraval
justifica o trabalho do soldado apoiado no ensinamento de Cristo, desenvolvendo
a ideia de guerra defensiva em torno da Terra Santa, lugar que representa a
herança e casa de Deus, ameaçada pelos infiéis». In Nuno Villamariz Oliveira, O Ideário
de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária, Revista
Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006,
ISSN 1646-740X.
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