terça-feira, 18 de julho de 2017

Assim foi Auschwitz Primo Levi. «Ao meio-dia, os deportados recebiam um litro de sopa de nabo ou couve, absolutamente insípida devido à falta de qualquer tempero…»

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«(…) O estado higiénico-sanitário do Campo parecia, à primeira vista, realmente bom: as ruas e vielas que separavam os diversos blocos, eram limpas e bem conservadas, até onde permitia o chão lamacento; o exterior dos blocos, em madeira, era bem pintado e o interior tinha os soalhos cuidadosamente varridos e lavados todas as manhãs, com os chamados castelos (beliches) de três andares em perfeita ordem, as mantas dos catres bem estendidas e alisadas. Mas tudo isto era apenas aparência, sendo a substância completamente diferente: na verdade, nos blocos, que normalmente deveriam albergar entre 150 e 170 pessoas, amontoavam-se sempre pelo menos 200, muitas vezes até 250 pessoas, e portanto em quase todas as camas dormiam duas pessoas. Nessas condições, o tamanho do dormitório era certamente inferior ao mínimo exigido pelas necessidades de respiração e hematose. Os catres eram providos de uma espécie de saco grande, mais ou menos cheio com serragem de madeira, reduzida quase a pó pelo uso prolongado, e dois cobertores. Os cobertores, além de nunca serem trocados nem submetidos, a não ser muito raramente e por motivos excepcionais, a qualquer desinfecção, estavam, na maior parte dos casos, em péssimo estado de conservação: gastos pelo uso prolongado, rasgados, cobertos de todo o tipo de manchas. Só os catres mais à vista eram providos de cobertores mais decentes, quase limpos, e às vezes até bonitos: eram os catres dos andares inferiores e mais próximos da porta de entrada.
Naturalmente, essas camas eram reservadas para os pequenos líderes do Campo: capatazes e seus assistentes, ajudantes do chefe de bloco, ou simplesmente amigos de uns ou de outros. Assim se explica a impressão de limpeza, ordem e higiene que a pessoa tinha ao entrar num dormitório pela primeira vez e deitando um olhar superficial ao seu interior. Nas armações dos beliches, nas vigas de sustentação, nas tábuas dos catres, viviam milhares de percevejos e pulgas que impediam os prisioneiros de dormir à noite; nem sequer as desinfecções dos dormitórios com vapores de ácido nitrídrico, efectuadas de três em três meses ou de quatro em quatro, eram suficientes para destruir esses hóspedes que continuavam a vegetar e a multiplicar-se quase imperturbáveis.
Os piolhos, pelo contrário, eram combatidos a fundo, a fim de prevenir o surgimento de uma epidemia de tifo petequial: todas as noites, após regressar do trabalho, e com maior rigor nas tardes de sábado (dedicadas, entre outras coisas, a rapar o cabelo; a barba e por vezes também outros pêlos), praticava-se o chamado controlo dos piolhos. Cada prisioneiro tinha de se despir e submeter as suas roupas ao exame minucioso dos encarregados dessa função; se fosse encontrado um único piolho na camisa de um deportado, todas as roupas de todos os ocupantes do dormitório eram imediatamente enviadas para desinfecção e os homens eram submetidos a duches, depois de serem esfregados com lisol. Assim, tinham de passar a noite inteira nus, até às primeiras horas da manhã, quando as suas roupas voltavam do barracão de desinfecção, impregnadas de humidade.
No entanto, não se tomava qualquer outra providência para a profilaxia das doenças contagiosas, que eram frequentes: tifo e escarlatina, difteria e varicela, sarampo, erisipela etc., sem contar com as inúmeras infecções cutâneas contagiosas, como as epidermofitoses, os impetigos, as sarnas. É de facto surpreendente que, tendo em conta tanta negligência em relação às normas higiénicas de pessoas que viviam numa promiscuidade tão grande, nunca tenham surgido epidemias de rápida difusão. Uma das maiores possibilidades de transmissão de doenças infecciosas consistia no facto de uma razoável percentagem de prisioneiros não dispôr de gamela ou de colher, de modo que três ou quatro pessoas eram obrigadas a comer sucessivamente no mesmo recipiente ou com o mesmo talher, sem poder lavá-lo.
A alimentação, de quantidade insuficiente, era de má qualidade. Consistia em três refeições: de manhã, logo depois de acordar, eram distribuídos 350 gramas de pão quatro vezes por semana e 700 gramas três vezes por semana, portanto, uma média diária de 500 gramas, quantidade que seria razoável se o próprio pão não trouxesse incontestavelmente uma grande quantidade de escórias, entre as quais, de forma muito visível, serragem de madeira; além disso, ainda de manhã, davam-nos 25 gramas de margarina com uns vinte gramas de salame ou uma colherada de doce ou ricota. A margarina era distribuída só seis dias por semana; mais tarde, essa distribuição reduzir-se-ia para três dias. Ao meio-dia, os deportados recebiam um litro de sopa de nabo ou couve, absolutamente insípida devido à falta de qualquer tempero, e à noite, no final do trabalho, outro litro de sopa um pouco mais consistente, com algumas batatas ou, por vezes, ervilhas e grão-de-bico; mas esta também totalmente desprovida de componentes gordurosos». In Primo Levi, Assim foi Auschwitz, 2015, Penguin Randon House Grupo Editorial, Objectiva, 2015, ISBN 978-989-877-569-6.

Cortesia de Objectiva/JDACT