«A consciência da existência de várias fases, idades ou
estádios, que se sucedem ao longo da vida de cada indivíduo, encontra-se bem
presente no discurso letrado ocidental, desde a Antiguidade clássica. Tal como
então, também a Idade Média considerou a infantia como a primeira das idades de um conjunto que tendia a ser de
seis, antecedendo a pueritia (dos
seis aos catorze anos), a adolescentia (dos catorze aos vinte), a juventus (até aos quarenta), a senectus (até aos sessenta anos) e a senium (depois dos sessenta). De facto, tendo
como base um esquema difundido através das Etimologias de Isidoro de Sevilha, sempre foi esta
a formulação mais seguida nos tempos medievais.
No século
XIII, por exemplo, esta divisão continuava a vigorar na nova e muito consultada
enciclopédia de Bartolomeu, o Inglês, e, dois séculos mais tarde, já no âmbito
da cultura letrada leiga e cortesã, ela também se encontra na base do repartimento das idades enunciadas por Duarte I no
seu Leal Conselheiro, onde se
volta a repetir ser a ifancia ataa VII annos, puericia ataa XIIII, ataa XXI
adolacencia, mancebia ataa cincoenta, velhice ataa LXX, senium ataa LXXX. E
dali, ataa fim da vida, ecrepidus.
Contudo,
embora existisse um consenso entre os letrados medievais sobre a validade da
consideração de seis etapas a percorrer na vida de qualquer indivíduo,
assistiu-se, sobretudo a partir do século XIII, à formulação de propostas que
ampliavam, reduziam ou complexificavam o esquema isidoriano das idades do
homem, sem contudo alterar os seus aspectos essenciais. Algumas delas
resultaram da tentativa de impor um ciclo de sete etapas, mais propício ao
estabelecimento de relações simbólicas entre as sucessivas fases etárias e os
planetas, os dias da semana, as idades do mundo ou os dons do Espírito Santo,
acrescentando à fórmula das Etimologias uma nova idade terminal, senies, a alcançar depois dos setenta anos, ou subdividindo a primeira,
conforme propôs, na década de sessenta do século XIII, Aldebrandino de Siena,
para quem a infantia se reduzia até
ao tempo do aparecimento dos primeiros dentes, sendo depois seguida, até aos
sete anos, pela idade da dentum plantatura.
Paralelamente,
começaram também a surgir propostas de vários pedagogos apontando para uma
redução no cômputo das seis idades. Filipe de Novara, por exemplo, baseando-se
nas tradições pitagórica e aristotélica, sugeria, em 1260,
a consideração de quatro idades correspondentes às quatro
estações do ano e aos quatro elementos da natureza. Neste caso, à infância, que
decorreria até aos vinte anos e que se articularia com a Primavera e com a
água, suceder-se-iam a juventude, até aos quarenta e sob o signo do Verão e do
fogo, a média idade, conotada com o Outono e a terra, e, a partir dos sessenta
anos, a velhice, a fase etária correspondente ao Inverno e ao ar. Mais
sintético e global, Gil de Roma sugeria, em 1285,
a simples consideração de uma juventude primaveril,
seguida pela idade madura do Verão e finalizada pela velhice de um
Outono-Inverno.
No
seu conjunto, todas estas novas propostas acabavam por desvalorizar as idades
extremas, remetendo os inícios da sequência, princípio, progressão, equilíbrio,
declínio, para uma fase etária em que ainda não se tinham adquirido as
capacidades vitais, e os seus finais para um tempo de decrepitude e de
senilidade. Sendo assim, a infância e a velhice surgiam como idades
imperfeitas, sobretudo por contraste com a fase que correspondia aos trinta
anos, a idade em
que Cristo começou a fazer milagres. De resto, tanto os textos
dos médicos como dos pedagogos medievais insistiam em atribuir à infantia várias carências e debilidades que
acentuavam, por sua vez, a ideia de uma imperfeição, aspecto que as Etimologias de Isidoro de Sevilha tinham
contribuído para evidenciar, dado registarem para a infantia a etimologia de in-fans, ou
seja, quem não sabe ainda falar ou articular palavras, porque,
sem ter ainda desenvolvido os dentes, lhe faltava a faculdade da
linguagem.
Para os
médicos, ao seguir a teoria dos humores, a criança era um ser muito quente e
muito húmido, explicando-se a fraqueza e a debilidade dos primeiros anos de
vida por um desequilíbrio com o frio e o seco exteriores que só seria corrigido
com o avanço dos anos. Para os pedagogos, por sua vez, a infantia caracterizava-se
por uma genérica falta de maturidade, expressa na incapacidade de elaborar um
discurso coerente antes dos cinco anos, mostrando-se, portanto, bastante
cépticos sobre o início de um processo pedagógico de aprendizagem antes dessa
idade. De facto, mesmo para alguns teólogos, a criança não deveria ser
responsabilizada por actos praticados antes dos cinco anos, só devendo ser
confessada e admitida à comunhão depois dos seus cinco sentidos corporais se
encontrarem devidamente espiritualizados pelo conhecimento do significado
simbólico dos cinco elementos associados à eucaristia, ou seja, a carne e o
sangue de Cristo que se consubstanciavam no pão, no vinho e na água manipulados
durante a missa». In Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade
Medieval Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos
Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.
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