sábado, 29 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «… para o elegerem como primeiro portador da poderosa intriga, crentes de que correria a narrá-la à filha predilecta. Partimos após as exéquias do arcebispo!, ordenou Afonso VII»

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A intriga de Compostela 1140-1142
«(…) O imperador animou-se! Nessa mesma noite, enquanto o arcebispo Gelmires soltava o último suspiro, conferenciou com Fernão Peres Trava, seu conselheiro e um dos nobres mais poderosos da Galiza. No entanto e para surpresa de Afonso VII, o Trava não se excitou com a malícia. Embora fosse dotado de um espírito arguto, quando o assunto era Afonso Henriques o fino galego cegava de ódio puro e suspendia o pensamento lúcido. Fernão Peres nunca perdoara ao príncipe de Portugal a derrota na batalha de São Mamede, nem a forma como este tratara a mãe, colocando-a a ferros numa masmorra. O amor intenso à falecida dona Teresa não passava já de uma saudade forte, mas a raiva ao filho dela perdurava e, nos últimos anos, o Trava tudo tentara para matar Afonso Henriques. Nunca fora bem-sucedido nas suas ignóbeis ciladas, mas não desistia e exclamou: ora, temos é de vencê-lo em batalha e no fim empalá-lo!
Este desejo sangrento e sórdido esbarrou em Afonso VII, que não desejava desperdiçar soldados em mais lutas contra o primo, pois a sua prioridade bélica centrava-se no combate aos sarracenos. Os muçulmanos da Andaluzia dividiam-se em querelas e o califa de Marraquexe, o almorávida Ali Yusuf, retirara as suas tropas da península, para se defender dos ataques constantes dos almóadas em Marrocos. Nunca fora tão óbvia a vulnerabilidade dos mouros andaluzes e o imperador queria conquistar Cória e depois atacar Córdova e Sevilha, para ser o primeiro rei cristão a chegar ao mar, em Almeria.
Mais guerras, só contra os mouros!, proclamou Afonso VII, impondo a sua estratégia intriguista ao Trava, a quem no final perguntou, deveras curioso. Alguma vez dona Teresa vos falou das crianças trocadas? Vaidoso, Fernão Peres aprumou o balandrau verde e endireitou-se, como sempre fazia quando falava da defunta paixão. Tinha duas filhas de dona Teresa e não voltara a amar ninguém como a ela. Nunca!, exclamou, ligeiramente ofendido. O imperador compreendeu. Porque haveria a tia, dona Teresa, de querer que aquele sujo segredo se soubesse? Se o verdadeiro Afonso Henriques tivesse sido trocado, a desonra atingia-a também, prejudicando os seus interesses. A tia preferira o silêncio. Fosse quem fosse o menino, era seu filho e o herdeiro do Condado! E Chamoa?, questionou o imperador.
Sobrinha de Fernão Peres Trava, Chamoa Gomes era filha da irmã deste, Elvira, e de Gomes Nunes, conde de Toronho. Além disso, era irmã da minha esposa, Maria Gomes, e, mais importante ainda, esperava um filho de Afonso Henriques, seu amor antigo. Que interessa o que sabe Chamoa?, resmungou o Trava. O tio embirrava com a sobrinha, desde que esta se enamorara de Afonso Henriques. Mas Afonso VII há anos que admirava e desejava a beldade galega. Chamoa possuía uns olhos verdes luminosos, uns cabelos cor de mel inebriantes, um olhar de corsa indefesa e gentil, um sorriso alegre e empolgante, um peito frondoso e coberto de sardas incandescentes. Um mimo de mulher, uma gostosa fantasia, tão apetitosa para filhar...
As mulheres acreditam muito nestas intrigas, disse o imperador, já entusiasmado. Há que confundi-la! Antes de minar as ideias do papa, dos templários ou dos portucalenses, Afonso VII pretendia baralhar Chamoa, julgando que assim atingiria mais depressa o príncipe de Portugal. Só que o enervado Trava encolheu os ombros, descrente em tal caminho. Chamoa acompanhava sempre Afonso Henriques entre Guimarães e Coimbra, não seria fácil denegrir o amado naquele coração tão dedicado. Sem desistir, o imperador lembrou: O pai dela está em Tui!
Gomes Nunes encontrava-se no seu castelo e podiam ir até lá, na aparência para o obrigarem a prestar vassalagem ao imperador, mas, na realidade, para o elegerem como primeiro portador da poderosa intriga, crentes de que correria a narrá-la à filha predilecta. Partimos após as exéquias do arcebispo!, ordenou Afonso VII». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT