«(…) A atitude do abade de Claraval é difícil de
compreender. Na verdade, a que se deverá o silêncio de um homem tão empenhado
no confronto com o Islão na recusa em elaborar semelhante obra? Poderia o
mosteiro de Claraval possuir um conhecimento prévio desses textos muçulmanos?
Terá São Bernardo ocultado, dessa forma, o seu interesse, estritamente
intelectual, como o do abade de Cluny, por esses escritos? Provavelmente nunca
viremos a saber se a sua obra literária terá sido realizada tendo algum
contacto com os textos dos seus inimigos espirituais. Quanto ao fundador da
ordem cisterciense, Estêvão Harding, de origem inglesa, sabemos que recorreu a
sábios judeus para o ajudarem na redacção criteriosa da Bíblia de Cister.
Esses intérpretes dominavam os textos hebraicos e, em especial, o Talmude,
embora não se saiba se poderiam ler ou falar o árabe. Do que subsiste da
biblioteca de Claraval, actualmente dispersa por Troyes e Montpellier, não é
possível discernir se ela possuiria qualquer obra traduzida de fontes
muçulmanas. A razão desta longa série de observações está relacionada com o
conhecimento muito preciso que São Bernardo parece ter tido do Islão e da sua
mística guerreira. O Elogio à nova Milícia, em que o abade de Claraval
faz a apologia do combatente espiritual, asceta e cavaleiro, assemelha-se de
facto ao guerreiro da jihad, o seguidor de Maomé, ele próprio um
cavaleiro. Sabemos que o Templo teve como objectivo principal o combate pela
defesa da Terra Santa, e que constituiu a resposta cristã à Crescentada, mas
ainda pouco se tem investigado as influências que ele eventualmente terá
recebido desta, mesmo por uma via de oposição. A expansão da fé através da
espada é algo a que se assiste desde Constantino e a ela o nascimento do Islão
e o fluxo das Cruzadas muito devem. No entanto, em ambos os casos, esquece-se
por vezes que a persuasão exerceu um papel tão importante como o confronto
armado. Neste sentido, como enquadrar o emprego da força na afirmação e difusão
da verdade religiosa em vez da via menos belicista? A resposta parece advir do
facto de o recurso à violência não poder deixar de se exercer quando estão em
jogo determinadas circunstâncias fundamentais, como a defesa espiritual dos
lugares sagrados, num paralelo com a atitude de Cristo perante os vendilhões do
Templo.
Se para o Islão a
guerra foi sempre entendida como uma necessidade inerente ao triunfo da sua
causa, Maomé promete o Paraíso aos soldados mortos na jihad, para o
Cristianismo das origens a recusa da força das armas e da violência foi total.
O carácter pacifista era uma realidade nos primeiros séculos da história da
Igreja, à imagem de Cristo, que se deixou submeter à autoridade do seu tempo,
propagou o amor pelo inimigo e, por fim, preso pelos soldados romanos, não se
defendeu e impediu a intromissão dos discípulos, deixando-se crucificar. No
entanto, começou a impor-se, do lado dos homens da Igreja, uma nova concepção,
baseada fundamentalmente em Santo Agostinho, na qual, mediante certas
circunstâncias, como a da invasão de um território pelo inimigo, haveria lugar
a uma guerra justa, para o recuperar e punir os criminosos. Esta atitude que
emerge dos escritos do bispo de Hipona era baseada, ela própria, no conceito de
guerra sagrada que emanava dos textos do Antigo Testamento, vindo a influenciar
toda a teologia medieval e, sobretudo, São Bernardo que, como ninguém havia
feito antes no Ocidente, veio a valorizar e sacralizar a função militar. O seu
objectivo era, então, através de um combate honesto, devolver o território a
Cristo, restabelecendo a sua herança, como se os cruzados fossem os novos
hebreus em busca da terra prometida. Por isso, o abade de Claraval insiste que
os cruzados devem realizar uma conversão interior, ascética e expiatória, antes
de partirem para o Oriente. Do mesmo modo, ao dirigir-se aos Templários,
permanentes cruzados em vigília, assegura-lhes que a morte de infiéis em
batalha leal não é um homicídio, mas um malicídio.
Devemos
igualmente tentar compreender o apoio que o santo vai dar à Ordem do Templo. A
regra que redigiu para esta e o Tratado apologético sobre as glórias da nova
milícia que lhe dedicou demonstram as relações de São Bernardo com a Cavalaria.
Se existe um domínio no qual o abade de Claraval esteja devidamente informado é
o domínio cavaleiresco. Pelas suas origens na nobreza, ele era conhecedor do
mundo dos senhores e dos cavaleiros. Acompanhou-os na sua adolescência, altura
em que decide entrar para Cister, conservando ao longo da vida as suas amizades
entre a aristocracia laica. Considera os monges como combatentes espirituais, e
na sua escrita é fácil denotar um leque variado de imagens associadas à arte da
guerra, em que não hesita em considerar Claraval um mosteiro fortificado, uma
espécie de cavalaria transfigurada. No seu 3º Sermão da obra In Dedicatione
Ecclesiae, o cisterciense compara essa sua casa, a Igreja, à fortificação
do rei eterno fustigado pelos seus inimigos. Daí as alusões precisas aos muros,
aos fossos, às armas defensivas e ofensivas, aos víveres que é necessário
acumular para que o terreno do Senhor resista: irmãos, esta casa é uma
fortificação de Deus, sitiada pelo inimigo. Todos os que jurámos sua bandeira e
nos alistámos na milícia necessitamos de três coisas para defender esta praça:
trincheiras, armas e víveres. Quais são as trincheiras? Escutemos o Profeta:
Temos uma cidade forte; estão postas para a salvar muralhas e antemuros. A
muralha é a continência e o antemuro a paciência. (...). O mesmo Salvador se
converteu em muralha e antemuro da sua cidade. (...). Também devemos ter bem
preparadas as armas, as armas espirituais, empunhando-as com a força de Deus;
não apenas para resistir ao inimigo, mas para o atacar e derrotar com bravura.
O
abade de Claraval chega mesmo a estabelecer a analogia entre o mosteiro e o
castelo como se se tratasse de uma única realidade: arrebatas a Cristo um magnífico
castelo, se entregas Claraval a seu inimigo. Ele, Claraval, recebe cada ano
excelentes rendas; há o costume de introduzir no seu campo fortificado um
copioso espólio retirado aos inimigos. Ele tem uma inteira confiança na sua
força. Aqui estão os que ele resgatou das mãos do inimigo, reunindo de todos os
países: norte e sul, levante e poente. São Bernardo não poderia ser mais
eloquente. Os Sermões para a Dedicação da Igreja revelam, de igual modo,
uma visão teológica, na qual se associa a figura de Deus a uma cidade defendida
por uma fortificação. Tão guarnecida está a fortificação da cidade do Senhor
que não existe o mais leve temor, contanto que actuemos fiel e valorosamente,
isto é, que não sejamos traidores, cobardes, nem ociosos. São traidores os que
tentam introduzir o inimigo na praça do Senhor, por exemplo, os difamadores, a
quem Deus aborrece; e os que semeiam discórdias e fomentam escândalos. (...)
... é um traidor quem pretende introduzir um vício qualquer nesta casa, e
converter este templo de Deus numa cova de bandidos. Graças a Deus há muito poucos desta
espécie entre nós. Mas às vezes não falta quem se ponha a falar ao inimigo e
faça um pacto com a morte; é dizer, fazer o possível por alterar a disciplina
da Ordem, reduzir o fervor, alterar a paz ou ferir a caridade. Livremo-nos
destes quanto pudermos, imitando Jesus que não se fiava neles. Asseguro-vos que
embora agora os toleres, se não se emendam sofrerão muito em breve um juízo tão
rigoroso quanto terrível é o mal que tramam». In Nuno Villamariz Oliveira, O Ideário
de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária, Revista
Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006,
ISSN 1646-740X.
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