domingo, 2 de julho de 2017

O Sangue dos Inocentes. Julia Navarro. «Quando ergo o olhar para o céu, Montségur surge entre a névoa, e a sua imagem desfocada enche-me de ansiedade»

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Languedoq meados do sécalo XIII
«Sou espião e tenho medo. Tenho medo de Deus, porque em Seu nome fiz coisas terríveis. Mas não, não Lhe atribuirei a culpa das minhas misérias porque não é Sua, apenas minha e da minha senhora. Na verdade, a culpa é dela e só dela, porque sempre se comportou como um ser omnipotente perante todos aqueles que têm estado ao seu lado. Jamais ousámos contradizê-la, nem sequer o seu esposo, o meu bom senhor. Vou morrer, sinto-o nas entranhas. Sei que chegou a minha hora, por mais que o físico me assegure que ainda viverei durante muito tempo, porque o mal que me consome não é mortal. Mas ele apenas estuda a cor da íris dos meus olhos e a minha língua, e sangra-me para me retirar os maus humores do corpo, embora isso não alivie a dor permanente que sinto na boca do estômago. O mal que me consome, tenho-o na alma, porque não sei quem sou nem qual o Deus que é verdadeiro. E, embora sirva os dois, acabo por os atraiçoar a ambos.
Escrevo para aliviar a mente, apenas por isso, embora saiba que, se estas páginas caírem nas mãos dos meus inimigos, ou até nas dos meus amigos, terei assinado a minha sentença de morte. Faz frio e, talvez porque tenha a alma gelada, por muito que me envolva na minha capa, não consigo aquecer os ossos. Esta manhã, frei Pèire, ao trazer-me um caldo quente, tentou animar-me com a chegada do Natal. Diz que frei Ferrer me virá visitar mais tarde, mas pedi-lhe que me desculpasse perante o inquisidor. Os olhos de frei Ferrer provocam-me vertigens e a sua voz pausada, terror. Nos meus pesadelos, envia-me para o Inferno, e mesmo aí sinto frio. Mas estou a desvairar. A quem interessa que tenha frio? Os irmãos não desconfiam ao ver-me escrever. É o meu ofício. Sou escrivão da Inquisição (maldita). Os meus outros irmãos também não desconfiam. Sabem que a minha senhora me pediu que escreva uma crónica do que acontece neste recanto do mundo. Quer que um dia os homens conheçam a iniquidade daqueles que dizem representar Deus.
Quando ergo o olhar para o céu, Montségur surge entre a névoa, e a sua imagem desfocada enche-me de ansiedade. Imagino o vaivém da minha senhora a dar ordens a uns e outros. Porque, por mais que dona María se tenha convertido em perfeita, mandar está no seu carácter. Nem quero pensar em que complicações nos teria metido se fosse homem. De vez em quando, filtra-se através da tela grossa da minha tenda a voz forte do senescal. Hugues des Arcis não parece estar de bom humor esta manhã, mas quem o está? Faz frio, e a neve cobre o vale e as montanhas. Os homens estão cansados, estamos aqui desde o passado mês de Maio, e receiam que o senhor Pèire Rotger de Mirapoix aguente durante muitos mais meses o cerco. O senhor de Mirapoix conta com a cumplicidade dos habitantes do lugar que, nas barbas do senescal, são capazes de entrar e sair da fortaleza levando provisões e notícias de parentes e amigos. Ontem, recebi uma mensagem da minha senhora dona Maria, na qual me incita a reunirmo-nos esta noite. Talvez o meu desassossego se deva a ter de atender a esta última ordem». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT