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Guillermo
«És um falhado. Sou uma pessoa
decente. A minha tia ergueu os olhos dos papéis que tinha nas mãos. Estava a lê-los
como se o seu conteúdo representasse uma novidade para ela. Mas não era assim. Naquele
currículo, estava resumido o meu breve e desastrado percurso profissional. Fitou-me
com curiosidade e continuou a ler, ainda que eu soubesse que não haveria muito mais
para ler. Chamara-me falhado não com a intenção de me ofender, mas como quem
constata algo evidente. O gabinete da minha tia era intimidante. Na verdade, aquilo
que mais me perturbava nela era a sua atitude altiva e distante, como se o
facto de ter triunfado na vida lhe permitisse olhar para o resto da família de nariz
empinado. Não gostava dela, mas eu também nunca havia sido o seu sobrinho favorito,
pelo que fiquei surpreendido quando a minha mãe me disse que a sua irmã pretendia
ver-me com urgência.
A tia Marta tornara-se a matriarca
da família, dominando inclusivamente os seus outros dois irmãos, o tio Gaspar e
o tio Fabián. Era consultada para qualquer assunto e ninguém tomava uma decisão
que não tivesse sido previamente aprovada por ela. A bem dizer, eu era o único que
a evitava e que, ao contrário dos meus primos, nunca procurava a sua aprovação.
Mas ali estava ela, orgulhosa por ter salvado e triplicado o património familiar,
um negócio dedicado à compra, venda e reparação de maquinaria, graças, entre outas
razões, ao conveniente casamento com o seu bondoso marido, o tio Miguel, por quem
eu nutria uma simpatia secreta. O tio Miguel tinha herdado alguns edifícios no centro
de Madrid, cujos inquilinos lhe pagavam avultadas rendas mensais. Exceptuando as
reuniões uma vez por mês com o administrador dos edifícios, nunca trabalhara. A
sua única preocupação era colecionar livros raros, jogar golfe e, sob qualquer pretexto,
escapar ao olhar vigilante da minha tia Marta, a quem delegara de bom grado a responsabilidade
de se reunir mensalmente com o administrador, sabendo que ela possuía a inteligência
e a paixão necessárias para acertar em tudo aquilo que fazia.
Pelos vistos, ao falhanço chamas
decência. Significará isso que todos aqueles que triunfam na vida são indecentes?
Estive quase a dizer que sim, mas, como tal atitude não agradaria à minha mãe, decidi-me
por uma resposta mais neutra. Como sabes, na minha profissão, ser decente costuma
significar acabar no desemprego. Não calculas como está o jornalismo neste país.
Ou estás alinhado com a direita ou com a esquerda. Não passas de uma correia de
transmissão para as ideias de uns ou de outros. Limitarmo-nos a reportar aquilo
que acontece e a opinar imparcialmente conduz-nos à marginalização e ao
desemprego. Sempre julguei que fosses um rapaz com ideias de esquerda, disse a minha
tia com uma certa ironia. E, agora, é a esquerda quem governa...
Sim, mas o governo pretende que
os jornalistas da mesma corrente ideológica fechem os olhos e calem a boca perante
os seus erros. Criticá-lo equivale a ser-se marginalizado. Deixam de te considerar
um dos seus e claro que, como também não estás vinculado aos outros, acabas por
ficar em terra de ninguém, ou seja, no desemprego, como eu estou. No teu
currículo, dizes que trabalhas num jornal digital. Que idade tens? A pergunta irritou-me.
Ela sabia perfeitamente que eu estava na casa dos trinta, que era o mais velho dos
primos. Mas era a sua forma de demonstrar o desinteresse que sentia por mim. Assim,
decidi não lhe dizer a minha idade, dado ser evidente que ela já a sabia.
Sim, faço crítica literária num
jornal da Internet. Não encontrei coisa melhor, mas, pelo menos, não tenho de pedir
dinheiro à minha mãe para comprar tabaco. A minha tia Marta observou-me de cima
a baixo, como se fosse a primeira vez que me visse, parecendo hesitar antes de se
decidir por me fazer uma proposta. Bem..., vou oferecer-te um emprego, que aliás
será bem pago. Confio que estejas à altura daquilo que esperamos de ti. Não sei
aquilo que pretendes oferecer, mas a minha resposta é não. Não gosto dos gabinetes
de imprensa das empresas. Se vim ter contigo foi porque a minha mãe me pediu». In
Julia Navarro, Diz-me quem Sou, 2010, Bertrand Editora, 2011, ISBN 978-972-252-367-7.
Cortesia de BertrandE/JDACT