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Carlos
Cabral
«A Calçada de Santana era péssima,
íngreme e muito irregular, como quase todas as calçadas de Lisboa. Elvira detestava
a forma como as curvas apertadas lhe quebravam o trajecto; alarmava-se com as guinadas
da carruagem, quando o rodado ressaltava pelo empedrado abaixo, e com o
matraquear aflito dos cascos do cavalo, à procura de equilíbrio; angustiava-se com aquele
horizonte apertado entre casas e escoado em ruelas vindas sabia-se lá de onde,
como veredas numa floresta densa. Elvira não gostava do sítio nem das suas gentes.
Odiava a vozearia das mulheres que palravam de umas janelas para as outras, em assomos
de voz e gestos bruscos, debruçadas sobre a vida alheia, sem qualquer noção de
privacidade; enjoava-se com o cheiro a vinho que pairava, peganhento, no ar e no
bafo dos bêbados saídos das tabernas para importunar os transeuntes. Aquele era
o trajecto mais curto para chegar ao Rossio e o que fora sensato tomar, porque já
estavam atrasados para o teatro. Mas era, certamente, o mais feio e o que mais a
perturbava. O contacto com o mundo sórdido dos desfavorecidos era, ali,
inevitável e desconfortavelmente próximo, apesar de as cortinas da carruagem irem
corridas. Os zarolhos, os amputados, as bocas sem dentes, os cabelos sem
pentes, as caras engelhadas de rugas ou sulcadas por cicatrizes, desfilavam a
dois dedos da sua janela e eram visíveis, ou, pelo menos, adivinháveis, quando as
cortinas se entreabriam com os solavancos do veículo.
Carlos ia a seu lado, mas era como
se lá não estivesse. Olhando de soslaio para o marido, Elvira reconheceu a postura
distante, vagamente arrogante, que nele era tão comum. A postura de alguém
centrado em si mesmo e nos seus pensamentos. Há muito que não trocavam senão palavras
contadas e circunstanciais, e nunca falavam sobre assuntos que ele considerasse
fúteis, e a Calçada de Santana era, obviamente, um assunto fútil. Mesmo nos primeiros
anos do casamento, Carlos nunca se interessara verdadeiramente pelos sentimentos
de Elvira, nem se preocupara com as suas ansiedades. Era bem possível que nunca
se tivesse apercebido da existência dessa dimensão sensível e inquieta na mulher.
Elvira desviou o olhar do marido e
espreitou por uma fresta entre as cortinas. Lá fora um cego dedilhava uma guitarra
e cantava um fado qualquer, sobre trágicos amores:
O Conde de Vimioso
um duro golpe sofreu,
quando lhe foram dizer:
tua
Severa morreu!
Lisboa tinha uma infinidade de cegos,
depositados nas esquinas, perdidos no escuro, com expressões ermas, à espera de
esmolas. Por qualquer razão que não entendia, os da Calçada de Santana
trespassavam-lhe o coração. A cegueira parecia-lhe ali mais absoluta, e a cruz daqueles
desgraçados mais insuportável, do que em outros locais. Quando ouvia as suas vozes
e guitarras ressoando nas pedras da calçada, como nesse momento acontecia, a
garganta apertava-se-lhe e os olhos enchiam-se-lhe infalivelmente de lágrimas.
Chorai, fadistas, chorai,
que a Severa se finou,
o gosto que tinha o fado,
tudo
com ela acabou.
O marido não reparou na sua emoção,
raramente reparava em emoções, fossem suas ou dos outros. Para o racional e pragmático
Carlos, o silêncio emocionado de Elvira equivalia a um saudável recolhimento e a
Calçada de Santana era idêntica a outra rua qualquer: um percurso que tinha de ser
feito para ir do ponto A ao ponto B. Tanto quanto se lembrava, nunca deixara que
os detalhes, por mais invulgares ou desagradáveis que fossem, o distraíssem das
suas metas.
Vinte anos antes, a grande meta
de Carlos tinha sido casar com Elvira. Essa meta definira-se com muita rapidez e
clareza na sua cabeça, ainda que, olhando retrospectivamente, o caminho até lá tivesse
sido demorado, enrolado, sinuoso. Mas, nem por isso, Carlos deixara de o seguir
persistente e meticulosamente, como era, aliás, seu timbre». In
João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto Editora, 2010, ISBN
978-972-004-098-5.
Cortesia de PEditora/JDACT