sábado, 19 de agosto de 2017

A Princesa Traída por Pedro e Inês. Isabel Machado. «Abanei furiosamente a cabeça, tolhida para falar ou fugir dali. Tentei enxotá-lo de mim, esticando os braços para impor maior distância entre os nossos corpos»

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«E não sei qual foi mais desgraçada
se a zelosa esposa desdenhada
se a desditosa e sedutora amante...

Mas Constança, acredito, preferia
ter a morte de Inês, morte sombria
e ser amada do menos um instante!»
Luís de Camões, “Sonetos”

Constança
Castelo de Toro, Castela, 1328
«Libertai-me, senhor. À súplica soltara-se contra a minha vontade. Tentei aparrar-me do abraço forçado do rei de Castela e Leão, que me aprisionava o corpo. Afonso XI passou o rosto pela minha face e aflorou-me os lábios com os seus, enquanto me mantinha as mãos presas como uma condenada. Como vos sinto a falta, Constança, sibilou o jovem monarca, na sua voz suave e enganadora. O hálito quente bafejava-me o pescoço. A minha rejeição foi afrouxando e acabei por deixar-me ir naquela ilusão de bem-querença. A privação de afecto vencera, como de outras vezes, sempre que o rei aparecia do nada, tomando-me nos braços. Eu sabia que aquele roubo de ternura era condenado, mas não encontrava força nem desejo de lhe resistir. A solidão, amargurada e aflita, empurrava-me para o fugaz consolo do calor de uma pele sobre outra, para as suas palavras hábeis, com o suor a escorrer-me pelas costas de mulher-criança, de carne desperta para sensações que amaldiçoavam a alma e fraquejavam os sentidos.
Amava-o, apesar de tudo. Como se podia amar intensamente aos 10 anos, quando se crescera demasiado depressa, atirada com violência para o mundo dos adultos. E amava com a cegueira que a rejeição sempre atiçava. A vossa beleza entontece-me, tornou ele, volvido ainda mais meigo. E conduziu-me a mão pela sua face, de olhos cerrados. Eu abri os meus e demorei-me nele, vendo-o belo e confiando no seu enamoramento, com a escravatura do medo e da ilusão a condicionar-me o raciocínio. Sois minha, disse, repentinamente, alterado o tom de voz para a hostilidade que sempre acabava por se impor, desmoronando-se o fingimento, na dualidade de carácter do homem sinuoso que ocupava o trono de Castela e Leão e inquietava toda a Península.
Abanei furiosamente a cabeça, tolhida para falar ou fugir dali. Tentei enxotá-lo de mim, esticando os braços para impor maior distância entre os nossos corpos, mas nem o rei se afastou nem eu me senti melhor com a minha ousadia: Afonso XI soltava gargalhadas, o rosto contorcido a tomar as feições do Demo. Era esse o papel que melhor lhe assentava, quando deixava cair a máscara e mostrava toda a perfídia de que era feito. Pela frincha da porta, Violante Alarcón, a ama de quem eu bebera o leite, observava-nos. Impossibilitada de vir em meu auxílio, agarrava-se à fé de que o rei nunca fosse longe de mais, servindo-se do meu corpo intocado de donzela». In Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

Cortesia de EdosLivros/JDACT