«E não sei qual foi mais
desgraçada
se a zelosa esposa desdenhada
se a desditosa e sedutora amante...
Mas Constança, acredito, preferia
ter a morte de Inês, morte
sombria
e ser amada do menos um instante!»
Luís
de Camões, “Sonetos”
Constança
Castelo
de Toro, Castela, 1328
«Libertai-me, senhor. À súplica
soltara-se contra a minha vontade. Tentei aparrar-me do abraço forçado do rei
de Castela e Leão, que me aprisionava o corpo. Afonso XI passou o rosto pela
minha face e aflorou-me os lábios com os seus, enquanto me mantinha as mãos
presas como uma condenada. Como vos sinto a falta, Constança, sibilou o jovem
monarca, na sua voz suave e enganadora. O hálito quente bafejava-me o pescoço.
A minha rejeição foi afrouxando e acabei por deixar-me ir naquela ilusão de
bem-querença. A privação de afecto vencera, como de outras vezes, sempre que o
rei aparecia do nada, tomando-me nos braços. Eu sabia que aquele roubo de
ternura era condenado, mas não encontrava força nem desejo de lhe resistir. A
solidão, amargurada e aflita, empurrava-me para o fugaz consolo do calor de uma
pele sobre outra, para as suas palavras hábeis, com o suor a escorrer-me pelas
costas de mulher-criança, de carne desperta para sensações que amaldiçoavam a
alma e fraquejavam os sentidos.
Amava-o, apesar de tudo. Como se
podia amar intensamente aos 10 anos, quando se crescera demasiado depressa,
atirada com violência para o mundo dos adultos. E amava com a cegueira que a
rejeição sempre atiçava. A vossa beleza entontece-me, tornou ele, volvido ainda
mais meigo. E conduziu-me a mão pela sua face, de olhos cerrados. Eu abri os meus
e demorei-me nele, vendo-o belo e confiando no seu enamoramento, com a
escravatura do medo e da ilusão a condicionar-me o raciocínio. Sois minha,
disse, repentinamente, alterado o tom de voz para a hostilidade que sempre
acabava por se impor, desmoronando-se o fingimento, na dualidade de carácter do
homem sinuoso que ocupava o trono de Castela e Leão e inquietava toda a
Península.
Abanei furiosamente a cabeça,
tolhida para falar ou fugir dali. Tentei enxotá-lo de mim, esticando os braços
para impor maior distância entre os nossos corpos, mas nem o rei se afastou nem
eu me senti melhor com a minha ousadia: Afonso XI soltava gargalhadas, o rosto contorcido
a tomar as feições do Demo. Era esse o papel que melhor lhe assentava, quando
deixava cair a máscara e mostrava toda a perfídia de que era feito. Pela
frincha da porta, Violante Alarcón, a ama de quem eu bebera o leite,
observava-nos. Impossibilitada de vir em meu auxílio, agarrava-se à fé de que o
rei nunca fosse longe de mais, servindo-se do meu corpo intocado de donzela». In Isabel
Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros,
2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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