Constança
Castelo
de Toro, Castela, 1328
«(…) Afonso XI afastou-me de si
com brusquidão e manteve o riso diabólico. Estremeci e cravei as unhas nas
palmas das mãos para travar a minha mente, que já me levava através de uma
caverna para um local que nem ousaria nomear, onde o riso do rei ecoava, embora
ele, na realidade, apenas se dirigisse para fora da sala. Violante entrou e
correu para mim, aproveitando o curto tempo que teríamos a sós, enquanto não
aparecesse uma dama de companhia. Abraçou-me. Sentia-me o corpo entesado e frio
mas manteve o silêncio, qualquer apreciação da sua parte ao que acabara de acontecer
seria um perigo tão grave como se eu falasse das minhas visões, que exaltavam a
brutalidade dos meus dias e me traziam prenúncios de futuro. Eram pensamentos
inconfessáveis, em tempos de traição e de medo por toda a Ibéria. A ruína era o
destino certo para as mulheres que ousassem imaginar demasiado, como eu. Não havia
lugar para devaneios no reino de Afonso XI, mesmo que as visões mostrassem a
verdade. E também não havia lugar para mais pavores na minha vida.
Deixa-me, ordenei a Violante, em voz
contida. Tentei apagar da ideia a visita devastadora, que se mantinha viva, como
se o monarca estivesse ali mesmo, a agrilhoar-me os pulsos com correntes de ferro.
Persignei-me, cravando o olhar no crucifixo que carregava ao peito, na imagem
de ouro com pequenos rubis na coroa de espinhos, o fausto a cobrir o infortúnio,
tal e qual os meus dias. Ousava equiparar o seu calvário ao meu por acreditar
que, se conseguisse aceitar a minha história com a Sua resignação, seria muito mais
suportável o meu percurso. O fervor religioso era o que me sustinha e nunca vi
nos lampejos da minha imaginação qualquer blasfémia. Aprendi cedo que a
contradição faz parte da vida. Era preciso bater no fundo para recuperar alguma
coisa que se assemelhasse à verdade. Eu já há muito que batera no fundo, entre
o terror e a rejeição.
Rogo a Deus a felicidade,
confiara a Violante, o único ser que me restava naquele lugar. E o poder
pensara, sem o dizer, já ciente de que só pela autoridade nos chegaria o
respeito dos outros. Aceitai a Sua vontade, Constança, e sereis ditosa,
respondera, avara nos desejos. A minha vida não existia para conceber vontades próprias.
Mas não deixara de me passar um afago pelos cabelos, talvez para travar
qualquer gana de arrebatamento que não era estranho à minha verdadeira natureza
desassossegada. E oculta. Assenti, como tinha por hábito, mesmo sabendo que não
era verdade. Já me haviam sido dadas quase todas as provações. Por tantas vezes
inventara a minha vida, sabendo-me nascida para um destino de grandeza. Mas a
realidade sempre me mostrara como não passavam de ilusão os sonhos que se
construíam sobre ambições que não eram as nossas.
A luz clara da manhã entrava pela
janela, projectando-se sobre os meus pés, assentes na magnífica pele que cobria
o chão de pedra dos meus aposentos. Era o final do estio, mas o sol ainda
ardia. Violante e as aias, da melhor nobreza de Castela, haviam-me preparado
para mais um dia de dissimulação, cobrindo-me o corpo com um vestido de seda
lavrada a fio de ouro e entrançando-me o cabelo, caído em ondas, com luminosos
aljôfares, trazidos por mercadores do Oriente. Mergulhei as mãos na água de
rosas que me era estendida numa taça. Deixei que o perfume me envolvesse antes
de as retirar para que as enxugassem com toques suaves de uma toalha de linho.
Levantei-me para tomar o meu assento na mesa. Mas antes confirmei ao espelho
que voltava a aparentar bem o meu papel, como todos os dias, depois das noites
passadas na angústia e na incerteza. Estou pronta, disse, repetindo um dos
poucos dizeres que me permitia dirigir aos rostos hostis que via à minha volta.
Podeis mandar servir o jantar». In Isabel Machado, Constança, A Princesa
Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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