Bárbaros.
Cristãos. Muçulmanos
«(…) A população, cada vez menos numerosa e mais
débil, era ceifada por doenças endémicas (tuberculose, lepra, úlceras, eczemas,
tumores) e por tremendas epidemias como a peste. É sempre difícil fazer
cálculos demográficos pelos milénios passados, mas, segundo certos autores, a
Europa, que no século III poderia ter entre 30 e 40 milhões de habitantes,
estava reduzida no século VII a 14 ou 16 milhões. Pouca gente a cultivar pouca
terra e pouca terra a alimentar pouca gente. Mas os números modificam-se com a
aproximação da viragem do milénio e de novo se fala de 30 ou 40 milhões de
habitantes no século XI; e no século XIV já a população da Europa oscilará
entre os 60 e os 70 milhões. Ainda que os números não sejam exactos, podemos dizer
que a população duplicou, pelo menos, em quatro séculos. Ficou célebre o trecho
de Rodolfo, o Glabro, em
que este, depois de descrever a fome de 1033, nos conta como na aurora do novo
milénio a terra refloresce de súbito, como um prado na primavera: estava-se já
no terceiro ano depois do 1000 quando no mundo inteiro, mas sobretudo em Itália
e nas gálias, se dá uma renovação das igrejas basilicais. Todos os povos da
cristandade competiam entre si para ter a mais bela. Parecia que, sacudindo-se
e libertando-se da velhice, a própria terra se cobria toda com um cândido manto
de igrejas.
Com a reforma de Carlos Magno, tanto as abadias como os grandes
feudos fomentaram novas culturas, chegando a dizer-se que o século X estava cheio
de feijões. Esta expressão não deve ser tomada à letra, porque os feijões que
hoje conhecemos só chegaram com o descobrimento da América, e a Antiguidade conhecera,
quando muito, o feijão-frade. A expressão é, porém, exacta se a palavra feijões
significar legumes em geral, porque, por efeito de profundas modificações na rotação
das culturas, houve no século X um cultivo mais intenso de favas, grão-de-bico,
ervilhas e lentilhas, tudo legumes ricos em proteínas vegetais. Na mais remota
Idade Média, os pobres não comiam carne, a não ser que conseguissem criar
alguns frangos ou caçar às escondidas (porque os animais da floresta eram só
para os senhores). E, como comiam mal, descuravam as terras. Mas no século X
começa a difundir-se o cultivo intensivo dos legumes, para satisfazer as
necessidades energéticas de quem trabalha: com o aumento da ingestão de
proteínas, as pessoas tornam-se mais fortes, não morrem tão cedo, criam mais
filhos e a Europa repovoa-se.
No início do segundo milénio, por efeito de algumas invenções e do
aperfeiçoamento de outras, as relações de trabalho e as técnicas de comunicação
sofrem profundas modificações. Na Antiguidade, o cavalo era ajaezado com uma
espécie de coleira que exercia pressão no peito do animal, comprimindo os
músculos que se contraíam e não podiam, portanto, produzir uma tracção eficaz
(além disso, reduzia-lhe a resistência, oprimindo-lhe os pulmões). Isto dura
até ao século X. Entre a segunda metade deste século e o século XII,
vulgariza-se um novo tipo de arreio que desloca o ponto de aplicação do peito
para a espádua. O esforço de tracção é transmitido da espádua para todo o
esqueleto do animal, dando liberdade de acção aos músculos. Deste modo, a força
exercida pelo cavalo aumenta, pelo menos, de dois terços e o animal fica habilitado
a efectuar trabalhos em que até então só fora possível usar os bois, mais robustos
mas mais lentos. Além disso, enquanto até aí os cavalos eram atrelados lado a lado,
passa-se a pô-los em fila indiana, aumentando significativamente a eficácia da tracção.
É só em algumas miniaturas de cerca do ano 1000 que se nota este novo sistema de
ajaezamento. Além disso, o cavalo já é equipado com ferraduras (oriundas da
Ásia, por volta de 900). Antes, os cascos eram guarnecidos, em casos excepcionais,
com faixas de couro. Torna-se também comum o uso dos estribos, igualmente
oriundos da Ásia, que melhoram a estabilidade do cavaleiro e evitam que ele aperte
os joelhos contra os flancos do animal. A maior manobrabilidade do cavalo
amplia as fronteiras do mundo. A passagem, no século XX, do avião a hélice para
o avião a jacto (que reduz a metade a duração das viagens) não se compara com o
salto técnico que o novo sistema de aparelhamento e ferragem do cavalo
representa. O arado antigo não tinha rodas e tornava-se difícil dar-lhe a
inclinação adequada; mas no século XIII é introduzido na Europa um arado já
usado pelos povos nórdicos desde o século II da era antiga, com rodas e com
duas lâminas, uma para rasgar a terra e a outra, curva, a relha, para
revolvê-la». In
Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
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