«(…) Estou vendo que me entende.
Se o Comendador usar os nossos números zero para assustar alguém ou para limpar
o traseiro, isso é lá com ele, não com a gente. Mas a questão é que o meu livro
não deverá contar o que decidimos nas nossas reuniões da redacção, porque para
isso eu não precisaria do senhor, um gravador seria suficiente. O livro deverá
dar ideia de outro jornal, mostrar como durante um ano eu me esforcei para
realizar um modelo de jornalismo independente de qualquer pressão, dando a
entender que a aventura acabou mal porque não se podia dar vida a uma voz livre.
Para isso o senhor vai precisar inventar, idealizar, escrever uma epopeia, não
sei se me explico... O livro dirá o contrário do que aconteceu. Muito bem. Mas
o senhor será desmentido. Por quem? Pelo Comendador, que precisaria dizer que não,
que o projecto só tinha em mira uma extorsão? Melhor deixar pensarem que
precisou desistir porque também foi submetido a pressões, preferiu matar o
jornal para que ele não se tornasse uma voz, como se diz, teleguiada. E vamos
ser desmentidos pelos nossos redactores, que serão apresentados no livro como
jornalistas incorruptíveis? Meu livro será um betzeller, pronunciava
assim, como todos, e ninguém vai querer, nem saber, se opor a ele. Tudo bem, já
que nós dois somos homens sem qualidades, desculpe a citação, aceito o pacto. Gosto
de tratar com gente leal que diz o que tem no coração.
Primeiro encontro com os redactores.
Seis, parecem suficientes. Simei tinha avisado que eu não precisaria sair por aí
fazendo falsas apurações, mas deveria ficar sempre na redacção para registar os
vários acontecimentos. Por isso, para justificar a minha presença, começou
assim: senhores, vamos-nos apresentar. Este é o doutor Colonna, homem de grande
experiência jornalística. Vai trabalhar directamente comigo, e por isso vamos
defini-lo como assistente da direcção; a principal tarefa dele consistirá em
revisar todos os artigos dos senhores. Cada um aqui vem de experiências
diferentes, e uma coisa é ter trabalhado num jornal de extrema-esquerda, outra é
ter experiência, digamos, no La voce della fogna, e uma vez que somos
espartanamente poucos (como podem ver), quem sempre trabalhou com anúncios fúnebres
talvez precise escrever um editorial sobre a crise governamental. Portanto, é
uma questão de uniformizar o estilo e, se alguém sucumbir à fraqueza de
escrever palingenesia, Colonna vai dizer que não deve e sugerir o termo
alternativo. Profundo renascimento moral, disse eu. Isso. E, se para definir
uma situação dramática, alguém disser que estamos no olho do furacão, imagino
que o doutor Colonna terá a lucidez de lembrar que, segundo todos os livros
científicos, o olho do furacão é o único lugar onde reina a calma, enquanto o
furacão se vai expandindo por todos os lados. Não, doutor Simei, interferi. Nesse
caso direi que é preciso usar o olho do furacão porque, diga o que disser a ciência,
o leitor não sabe disso, e é exactamente o olho do furacão que vai-lhe dar a
ideia de estar no meio do problema. Foi assim acostumado pela imprensa e pela
televisão. Assim como o convenceu de que se diz suspáns e manágment enquanto
se deveria dizer suspens (e se escreve suspense e não suspence) e mánagment.
Óptima ideia, doutor Colonna, é
preciso falar a linguagem do leitor, e não a dos intelectuais que dizem
obliterar o documento de viagem. Por outro lado, parece que o nosso editor
disse uma vez que os seus telespectadores estão numa faixa média de idade (digo,
idade mental) de doze anos. Os nossos leitores não, mas é sempre útil atribuir uma
idade a eles: os nossos terão mais de cinquenta anos, serão bons e honestos burgueses
que desejam a lei e a ordem, mas adoram novidades e revelações sobre várias formas
de desordem. Partiremos do princípio de que não são aquilo que se costuma chamar
de leitor assíduo, aliás, grande parte deles não deve ter livro em casa, mas,
quando necessário, falaremos do grande romance que está vendendo milhões de exemplares
em todo o mundo. O nosso leitor não lê livros, mas gosta de pensar que existem
grandes artistas excêntricos e bilionários, assim como nunca verá de perto a diva
de pernas compridas e mesmo assim quer saber tudo sobre seus amores secretos. Mas
vamos deixar que os outros também se apresentem. Cada um por si. Começamos pela
única mulher, a senhorita (ou senhora)...
Maia Fresia. Solteira, ou single,
como preferir. Vinte e oito anos, quase formada em Letras, precisei parar por
razões familiares. Trabalhei durante cinco anos para uma revista de
celebridades, precisava andar pelo mundo do espectáculo farejando quem estava
mantendo uma amizade colorida com quem, e organizar uma tocaia dos fotógrafos;
na maioria das vezes eu precisava convencer um cantor, uma actriz, a inventar
uma amizade colorida com alguém e levá-los ao encontro com os paparazzi, quer
dizer, um passeio de mãos dadas ou mesmo um beijo furtivo. No começo eu gostava,
mas agora estou cansada de contar mentiras. E porque aceitou juntar-se à nossa
aventura, queridinha? Acho que um diário falará de coisas mais sérias, e é um
jeito de eu ficar conhecida com reportagens que não incluam amizade colorida.
Sou curiosa, e acho que boa detective. Era miúda e falava com um brio
ponderado. Óptimo. O senhor? Romano Braggadocio...» In Umberto Eco, Número Zero,
2015, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.
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