quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Número Zero. Umberto Eco. «Ou explodirmos nós a bomba, se for conveniente, disse Braggadocio em tom de chacota. Não diga disparates, repreendeu Simei»

jdact

«(…) Nome estranho, de onde vem? Olhe, essa é uma das muitas obsessões da minha vida. Parece que em inglês tem significado feio, mas por sorte nas outras línguas não. Meu avô era um enjeitado e, como o senhor sabe, nesses casos o sobrenome era inventado por um funcionário municipal. Se fosse um sádico poderia impingir até um Ficarotta, no caso de meu avô o funcionário era sádico pela metade e tinha certa cultura... Quanto a mim, sou especializado em revelações escandalosas e trabalhava exactamente para uma revista do nosso editor, Por baixo do pano. Mas nunca me contratou, pagava por artigo. Dos outros quatro, Cambria tinha passado as noites em prontos-socorros ou esquadras policiais para obter notícias frescas, prisões, mortes em acidentes espectaculares em estradas, e não fizera carreira; Lucidi inspirava desconfiança à primeira vista e havia trabalhado em publicações de que nunca ninguém tinha ouvido falar; Palatino vinha de uma longa carreira em semanários de jogos e passatempos; Costanza trabalhara como chefe de composição em alguns jornais, mas os jornais passaram a ter páginas demais, ninguém conseguia revisar tudo antes da impressão, de modo que até os grandes diários já escreviam Simone de Beauvoire, Beaudelaire, Rooswelt, e o chefe de composição começava a cair em desuso como a prensa de Gutenberg. Nenhum daqueles companheiros de viagem vinha de experiências empolgantes. Uma verdadeira Ponte de San Luis Rey. Como Simei tinha conseguido desencavar aquela gente, não sei.
Terminadas as apresentações, Simei delineou as características do jornal. Portanto, vamos fazer um diário. Por que Amanhã? Porque os jornais tradicionais contavam, e infelizmente ainda contam, as notícias da noite anterior, e por isso se chamavam Corriere della Sera, Evening Standard ou Le Soir. Agora a gente fica sabendo das notícias do dia anterior pela televisão às oito da noite, portanto os jornais estão contando sempre as coisas que a gente já sabe, e é por isso que vendem cada vez menos. No Amanhã, essas notícias que já estão desactualizadas que devem ser resumidas e lembradas, mas para isso basta uma nota que se leia em alguns minutos. Então do que o jornal vai falar?, perguntou Cambria. O destino dos diários hoje é o de ficarem parecidos com semanários. Vamos falar daquilo que poderia acontecer amanhã, com artigos aprofundados, suplementos investigativos, previsões inesperadas... Dou um exemplo. Às quatro explode uma bomba, e no dia seguinte todos já sabem. Pois bem, das quatro à meia-noite, antes de o jornal ir para o prelo, precisaremos descobrir alguém que diga algo inédito sobre os prováveis responsáveis, coisas que a própria polícia ainda não sabe, e traçar um cenário daquilo que vai acontecer nas semanas seguintes por causa daquele atentado...
Braggadocio: mas para dar andamento a apurações desse tipo em oito horas é preciso uma redacção pelo menos dez vezes maior que a nossa e um exército de contactos, que sei eu... Justo, e, quando o jornal for feito de verdade, é assim que deverá ser. Mas agora, durante um ano, só precisamos demonstrar que é possível fazer. E é possível porque um número zero pode ter a data que se quiser e pode ser perfeitamente um exemplo de como teria sido o jornal meses antes, suponhamos, quando a bomba explodiu. Nesse caso já sabemos o que terá acontecido depois, mas vamos falar como se o leitor ainda não soubesse. Portanto, todas as nossas indiscrições terão gosto de coisa inédita, surpreendente, ouso dizer oracular. Ou seja: ao cliente nós deveremos dizer: veja como teria sido o Amanhã se tivesse saído ontem. Entenderam? E, querendo-se, mesmo que ninguém nunca tivesse explodido a bomba, poderíamos muito bem fazer um número como se.
Ou explodirmos nós a bomba, se for conveniente, disse Braggadocio em tom de chacota. Não diga disparates, repreendeu Simei. Depois, como se reflectisse: e, se quiser mesmo fazer isso, não me venha contar. Terminada a reunião, acabei descendo com Braggadocio. Nós já não nos conhecemos?, perguntou. Eu achava que não, ele disse , de um jeito meio desconfiado, e logo começou a me tratar por você. Na redacção Simei tinha acabado de instaurar o uso de senhor, e eu tenho o costume de manter as devidas distâncias, tipo, nunca dormimos juntos, mas evidentemente Braggadocio estava deixando claro que éramos colegas. Eu não queria parecer um cara que assume ares de superioridade só porque Simei me tinha apresentado como redactor-chefe ou algo semelhante. Por outro lado, aquela figura me intrigava e eu não tinha nada melhor para fazer. Segurou-me pelo cotovelo e disse-me que íamos beber alguma coisa num lugar que ele conhecia. Sorria com os seus lábios grossos e os olhos meio bovinos, de um modo que me pareceu obsceno. Era calvo como von Stroheim, tinha a nuca em linha recta com o pescoço, mas com a fisionomia de Telly Savalas, o tenente Kojak. Pronto, sempre a citação. Bonitinha aquela Maia, não?» In Umberto Eco, Número Zero, 2015, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Cortesia de GradivaP/JDACT