«(…) Nome estranho, de onde vem? Olhe,
essa é uma das muitas obsessões da minha vida. Parece que em inglês tem significado
feio, mas por sorte nas outras línguas não. Meu avô era um enjeitado e, como o
senhor sabe, nesses casos o sobrenome era inventado por um funcionário municipal.
Se fosse um sádico poderia impingir até um Ficarotta, no caso de meu avô o
funcionário era sádico pela metade e tinha certa cultura... Quanto a mim, sou especializado
em revelações escandalosas e trabalhava exactamente para uma revista do nosso
editor, Por baixo do pano. Mas nunca me contratou, pagava por artigo. Dos
outros quatro, Cambria tinha passado as noites em prontos-socorros ou esquadras
policiais para obter notícias frescas, prisões, mortes em acidentes espectaculares
em estradas, e não fizera carreira; Lucidi inspirava desconfiança à primeira
vista e havia trabalhado em publicações de que nunca ninguém tinha ouvido
falar; Palatino vinha de uma longa carreira em semanários de jogos e
passatempos; Costanza trabalhara como chefe de composição em alguns jornais,
mas os jornais passaram a ter páginas demais, ninguém conseguia revisar tudo
antes da impressão, de modo que até os grandes diários já escreviam Simone de
Beauvoire, Beaudelaire, Rooswelt, e o chefe de composição começava a cair em
desuso como a prensa de Gutenberg. Nenhum daqueles companheiros de viagem vinha
de experiências empolgantes. Uma verdadeira Ponte de San Luis Rey. Como Simei
tinha conseguido desencavar aquela gente, não sei.
Terminadas as apresentações,
Simei delineou as características do jornal. Portanto, vamos fazer um diário.
Por que Amanhã? Porque os jornais tradicionais contavam, e infelizmente
ainda contam, as notícias da noite anterior, e por isso se chamavam Corriere
della Sera, Evening Standard ou Le Soir. Agora a gente fica sabendo das
notícias do dia anterior pela televisão às oito da noite, portanto os jornais
estão contando sempre as coisas que a gente já sabe, e é por isso que vendem cada
vez menos. No Amanhã, essas notícias que já estão desactualizadas que
devem ser resumidas e lembradas, mas para isso basta uma nota que se leia em
alguns minutos. Então do que o jornal vai falar?, perguntou Cambria. O destino
dos diários hoje é o de ficarem parecidos com semanários. Vamos falar daquilo
que poderia acontecer amanhã, com artigos aprofundados, suplementos investigativos,
previsões inesperadas... Dou um exemplo. Às quatro explode uma bomba, e no dia
seguinte todos já sabem. Pois bem, das quatro à meia-noite, antes de o jornal
ir para o prelo, precisaremos descobrir alguém que diga algo inédito sobre os prováveis
responsáveis, coisas que a própria polícia ainda não sabe, e traçar um cenário
daquilo que vai acontecer nas semanas seguintes por causa daquele atentado...
Braggadocio:
mas para dar andamento a apurações desse tipo em oito horas é preciso uma redacção
pelo menos dez vezes maior que a nossa e um exército de contactos, que sei
eu... Justo, e, quando o jornal for feito de verdade, é assim que deverá ser.
Mas agora, durante um ano, só precisamos demonstrar que é possível fazer. E é
possível porque um número zero pode ter a data que se quiser e pode ser
perfeitamente um exemplo de como teria sido o jornal meses antes, suponhamos,
quando a bomba explodiu. Nesse caso já sabemos o que terá acontecido depois,
mas vamos falar como se o leitor ainda não soubesse. Portanto, todas as nossas
indiscrições terão gosto de coisa inédita, surpreendente, ouso dizer oracular.
Ou seja: ao cliente nós deveremos dizer: veja como teria sido o Amanhã
se tivesse saído ontem. Entenderam? E, querendo-se, mesmo que ninguém nunca
tivesse explodido a bomba, poderíamos muito bem fazer um número como se.
Ou explodirmos nós a bomba, se
for conveniente, disse Braggadocio em tom de chacota. Não diga disparates, repreendeu
Simei. Depois, como se reflectisse: e, se quiser mesmo fazer isso, não me venha
contar. Terminada a reunião, acabei descendo com Braggadocio. Nós já não nos
conhecemos?, perguntou. Eu achava que não, ele disse tá, de um jeito
meio desconfiado, e logo começou a me tratar por você. Na redacção Simei tinha
acabado de instaurar o uso de senhor, e eu tenho o costume de manter as devidas
distâncias, tipo, nunca dormimos juntos, mas evidentemente Braggadocio estava
deixando claro que éramos colegas. Eu não queria parecer um cara que assume
ares de superioridade só porque Simei me tinha apresentado como redactor-chefe
ou algo semelhante. Por outro lado, aquela figura me intrigava e eu não tinha
nada melhor para fazer. Segurou-me pelo cotovelo e disse-me que íamos beber
alguma coisa num lugar que ele conhecia. Sorria com os seus lábios grossos e os
olhos meio bovinos, de um modo que me pareceu obsceno. Era calvo como von
Stroheim, tinha a nuca em linha recta com o pescoço, mas com a fisionomia de
Telly Savalas, o tenente Kojak. Pronto, sempre a citação. Bonitinha aquela
Maia, não?» In Umberto Eco, Número Zero, 2015, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015,
ISBN 978-989-616-643-4.
Cortesia de GradivaP/JDACT