sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Os Teatros de Lisboa. 1874. Júlio C. Machado. «Ninguém se vestia melhor do que elle nas peças d’epocha, ninguém melhor do que elle tirava partido das cores, da elegância das attitudes, da propriedade dos accionados»

Bordalo Pinheiro e jdact

De acordo com o original

D. Maria
«(…) E, como assim acontecesse, a Soller começou a ser a senhora Josepha Soller Assis. Este Assis, António Maria Assis, era um soffrivel actor de alta-comedia, e nascera dotado de quasi todas as condições que constituem o galã de theatro. Era alto, elegante, extremamente sympathico de phisionomia, e com bons olhos. Havia-se estrelado em theatros particulares, e só em 1844 se arriscou a theatros públicos no drama em cinco actos, O infanticidio ou a ponte de S. Cloud. Tinha vinte e dois annos então. No theatro normal, o seu reportório foi sempre o mais escolhido e o mais litterario, e, de ordinário, capricho do acaso ou iniciativa dos auctores, teve este artista papeis em que fazia a cada passo declarações de amor..., a sua mulher! Garrett gostou muito d'elle no seu fr. Luiz de Sousa, e este é decerto o maior louvor para a memoria do artista.
Comquanto a natureza fosse cruel para com a Soller, baixinha, sem voz, sem olhar, sem elegância, o trabalho, que é um segundo talento, valleu-lhe e elevou-a. Chegou a ser notável, grande. Mas, a estrella da felicidade foi-se apagando para ella a pouco e pouco; vieram as guerras e misérias dos bastidores; a melancholia de se encontrar preterida, o despeito de ver que lhe roubavam as flores da sua coroa, não poderia deixar de ter influencia no seu destino; deshabituada do palco pelos longos intervallos em que se encontrou afastada d'elle, sempre que reaparecia em scena, ia como que receiosa, indecisa, timida, hesitante, tremula! Tinha ainda altitudes, gestos, meneios de cabeça, admiráveis; quando representava com Emilia das Neves, ainda erguia a fronte soberbamente, como sacudindo o peso da oppressão que nos últimos tempos lha curvava! Havia thesouros de vingança a trahirem-se nas suas mãos que se encrespavam, nos seus nervos que tremiam sob a immobilidade fria de uma resolução implacável!
Disse adeus difinitivo ás glorias de acordar o enthusiasmo; o publico insaciável e inconstante nos seus prazeres, não se preoccupou sequer um instante com a desgraça d’esse antigo idolo. Sentia e impressionava-se quando declamava! Não era uma vaidosa recitação mais ou menos modulada pelos lábios; era a voz que se quebra, as fibras que palpitam, um anno de vida gasto em dez minutos! Era o ódio, o furor, a revolta, a aspiração á liberdade, as mais devoradoras paixões humanas concentradas n’um frágil corpo de mulher! Se os auctores attendessem ao melhor género do seu talento, se o theatro não a desconsiderasse afastando-a da scena, o publico haveria tido mais occasiões de applaudir senão a esbelta e alegre Ciganinha, ao menos a pallida e melancholica Luiza do Casal das giestas!
Onde havemos de collocar o nosso Rosa, João Anastácio, que apparece hoje tão raras vezes no tablado, e ora n‘um theatro, ora n’outro, sem se perceber bem se elle ainda é do teatro de D. Maria, se é de qualquer theatro de Lisboa ou Porto, ou se não é já de theatro algum? Rosa tem sido um artista importante, mexendo um pouco em tudo, e dotado de uma quantidade de prendas, só comparável á da menina do conto que o pae queria casar: isto canta, isto toca, isto dança, isto borda, isto faz doce!...
Assim, Rosa actor! Chega a parecer a ladainha: Rosa mystica! Rosa ebúrnea! Rosa pulcra! D’essa variedade de talentos tirou por muitas vezes os melhores segredos para a composição do seu personagem. Ninguém se vestia melhor do que elle nas peças d’epocha, ninguém melhor do que elle tirava partido das cores, da elegância das attitudes, da propriedade dos accionados, das combinações engenhosas de caracterisação.
Depois, como sabia sempre com perfeição os seus papeis, tornava-se completamente senhor da acção e verdadeiramente attingia por vezes as proporções de artista de primeira ordem. A doença e a rabuge principiaram a querer moel-o. Elle tem-as moido a ellas. Ainda eu era pequeno já elle voltava dos Pyreneos onde fora tratar-se. Desde então, lá tem tido artes de entreter seus males e por ahi o vemos, com grande alegria nossa, ir passeando a sua enfermidade e o seu mau humor. Não há affectação n’aquelle estado. Soffre effectivamente com as alternativas do tempo, e duas ou três nuvens paradas no azul do ceu prejudicam-o mais do que se pode calcular». In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.


Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT