De
acordo com o original
D.
Maria
«(…)
E, como assim acontecesse, a Soller começou a ser a senhora Josepha Soller Assis.
Este Assis, António Maria Assis, era um soffrivel actor de alta-comedia, e
nascera dotado de quasi todas as condições que constituem o galã de theatro. Era
alto, elegante, extremamente sympathico de phisionomia, e com bons olhos. Havia-se
estrelado em theatros particulares, e só em 1844 se arriscou a theatros públicos
no drama em cinco actos, O infanticidio ou a ponte de S. Cloud. Tinha vinte e
dois annos então. No theatro normal, o seu reportório foi sempre o mais
escolhido e o mais litterario, e, de ordinário, capricho do acaso ou iniciativa
dos auctores, teve este artista papeis em que fazia a cada passo declarações de
amor..., a sua mulher! Garrett gostou muito d'elle no seu fr. Luiz de Sousa, e
este é decerto o maior louvor para a memoria do artista.
Comquanto
a natureza fosse cruel para com a Soller, baixinha, sem voz, sem olhar, sem
elegância, o trabalho, que é um segundo talento, valleu-lhe e elevou-a. Chegou
a ser notável, grande. Mas, a estrella da felicidade foi-se apagando para ella
a pouco e pouco; vieram as guerras e misérias dos bastidores; a melancholia de
se encontrar preterida, o despeito de ver que lhe roubavam as flores da sua coroa,
não poderia deixar de ter influencia no seu destino; deshabituada do palco
pelos longos intervallos em que se encontrou afastada d'elle, sempre que reaparecia
em scena, ia como que receiosa, indecisa, timida, hesitante, tremula! Tinha
ainda altitudes, gestos, meneios de cabeça, admiráveis; quando representava com
Emilia das Neves, ainda erguia a fronte soberbamente, como sacudindo o peso da
oppressão que nos últimos tempos lha curvava! Havia thesouros de vingança a
trahirem-se nas suas mãos que se encrespavam, nos seus nervos que tremiam sob a
immobilidade fria de uma resolução implacável!
Disse
adeus difinitivo ás glorias de acordar o enthusiasmo; o publico insaciável e
inconstante nos seus prazeres, não se preoccupou sequer um instante com a
desgraça d’esse antigo idolo. Sentia e impressionava-se quando declamava! Não
era uma vaidosa recitação mais ou menos modulada pelos lábios; era a voz que se
quebra, as fibras que palpitam, um anno de vida gasto em dez minutos! Era o
ódio, o furor, a revolta, a aspiração á liberdade, as mais devoradoras paixões
humanas concentradas n’um frágil corpo de mulher! Se os auctores attendessem ao
melhor género do seu talento, se o theatro não a desconsiderasse afastando-a da
scena, o publico haveria tido mais occasiões de applaudir senão a esbelta e
alegre Ciganinha, ao menos a pallida e melancholica Luiza do Casal das giestas!
Onde havemos
de collocar o nosso Rosa, João Anastácio, que apparece hoje tão raras vezes no tablado,
e ora n‘um theatro, ora n’outro, sem se perceber bem se elle ainda é do teatro de
D. Maria, se é de qualquer theatro de Lisboa ou Porto, ou se não é já de theatro
algum? Rosa tem sido um artista importante, mexendo um pouco em tudo, e dotado
de uma quantidade de prendas, só comparável á da menina do conto que o pae queria
casar: isto canta, isto toca, isto dança, isto borda, isto faz doce!...
Assim,
Rosa actor! Chega a parecer a ladainha: Rosa mystica! Rosa ebúrnea! Rosa pulcra!
D’essa variedade de talentos tirou por muitas vezes os melhores segredos para a
composição do seu personagem. Ninguém se vestia melhor do que elle nas peças d’epocha,
ninguém melhor do que elle tirava partido das cores, da elegância das attitudes,
da propriedade dos accionados, das combinações engenhosas de caracterisação.
Depois,
como sabia sempre com perfeição os seus papeis, tornava-se completamente senhor
da acção e verdadeiramente attingia por vezes as proporções de artista de primeira
ordem. A doença e a rabuge principiaram a querer moel-o. Elle tem-as moido a ellas.
Ainda eu era pequeno já elle voltava dos Pyreneos onde fora tratar-se. Desde então,
lá tem tido artes de entreter seus males e por ahi o vemos, com grande alegria nossa,
ir passeando a sua enfermidade e o seu mau humor. Não há affectação n’aquelle estado.
Soffre effectivamente com as alternativas do tempo, e duas ou três nuvens
paradas no azul do ceu prejudicam-o mais do que se pode calcular». In
Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro,
Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968,
University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT