«(…) Há-de matar aqueles arbustos
por baixo da janela, mais certo que certo, costumava ela dizer, e certas
noites, quando ficava muito zangada, ia lá abaixo em camisa de noite, batia-lhe
à porta e perguntava-lhe por que razão não ia fazer aquilo lá fora. Mas Hickey
nunca lhe respondia, era muito matreiro. Vesti-me à pressa e, quando me dobrei
para chegar aos sapatos, vi cotão, poeira e penas debaixo da cama. Não tinha
disposição para limpar o quarto, por isso puxei as cobertas para cima e
apressei-me a sair. O patamar estava escuro, como sempre. Uma janela feia, de vitral,
dava-lhe um ar fúnebre, como se alguém tivesse acabado de morrer lá em casa. Este
ovo vai parecer uma bala, gritou Hickey. Vou já, disse eu. Tinha de me lavar. A
casa de banho era fria, ninguém se servia dela. Uma casa de banho ao abandono com
uma mancha de ferrugem no lavatório, mesmo por baixo da torneira de água fria,
um sabonete cor-de-rosa novinho em folha e um toalhete de lavar a cara
entesado, que parecia ter ficado pendurado lá fora toda a noite, à geada.
Resolvi não me ralar e limitei-me
a encher um balde de água para a sanita. O autoclismo não funcionava, havia
meses que estávamos à espera de um homem para vir arranjá-lo. Fiquei
envergonhada quando a Baba, minha amiga da escola, foi lá acima e disse,
inevitavelmente: ainda avariado? Em nossa casa as coisas ou estavam estragadas
ou não eram usadas. A mamã tinha molas novas e vários rolos de corda nova num
guarda-fato, lá em cima; dizia que se as levasse para baixo só serviria para se
partirem ou serem roubadas. O quarto do meu pai era mesmo em frente da casa de
banho. As suas roupas velhas estavam estiraçadas numa cadeira. Ele não estava
ali, mas eu conseguia ouvir-lhe os joelhos a estalar. Os joelhos dele estalavam
quando se deitava e se levantava da cama. Hickey chamou-me uma vez mais.
A mamã estava sentada ao pé do
fogão a lenha, comendo um bocado de pão às secas. Os seus olhos azuis estavam
pequenos e inflamados. Não dormira. Olhava fixamente em frente, para algo que
só ela via, para o destino e para o futuro. Hickey piscou-me o olho. Estava a
comer três ovos estrelados com várias fatias de bacon curado em casa. Mergulhava
o pão na gema de ovo crua e depois chupava-o. Dormiste?, perguntei à mãe. Não.
Tu tinhas um rebuçado na boca e eu temia que sufocasses se o engolisses
inteiro, por isso fiquei acordada, pelo sim pelo não. Tínhamos sempre rebuçados
e tabletes de chocolate debaixo do travesseiro e eu tirara um rebuçado de fruta
mesmo antes de adormecer. Coitada da mamã, estava sempre preocupada. Suponho
que ficou ali deitada a pensar nele, à espera do ruído de um automóvel a parar
na estrada, à espera do rumor dos pés dele na erva molhada e do barulho do
ferrolho do portão. Esperando e tossindo. Tossia sempre, quando estava deitada;
por isso guardava trapos velhos, que lhe serviam de lenço, numa bolsa de veludo
que estava atada a um varão da cama de latão.
Hickey cortou a extremidade do
meu ovo. Tinha endurecido, por isso ele pôs-lhe uns bocadinhos de manteiga para
o embrandecer. Era um ovo de franga que mal ultrapassava o rebordo do oveiro
grande de porcelana. Tinha um ar ridículo, o ovo pequenino no oveiro grande,
mas sabia muito bem. O chá estava frio. Posso levar lilases a miss Moriarty?,
perguntei à mamã. Sentia vergonha de me aproveitar da infelicidade dela para
levar flores à professora, mas queria muito vencer a Baba e tornar-me a
queridinha de miss Moriarty. Sim, querida, leva aquilo que quiseres, disse a
mamã, distraída. Fui até junto dela, pus-lhe os braços à volta do pescoço e
beijei-a. Era a melhor mãe do mundo. Disse-lhe isso e ela estreitou-me durante
um minuto, como se não quisesse deixar-me ir. Eu era tudo para ela neste mundo,
tudo». In Edna O’Brien, Raparigas da Província, 1960, Relógio D’Água, 2010,
ISBN 978-989-641-176-3.
Cortesia de RelógioD’Água/JDACT