sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Os Anos. Virgínia Woolf. «As pessoas regressavam a Londres. Instalavam-se para a estação. Para ele, contudo, não haveria estação. Só ele não tinha nada que fazer»

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1880
«Era uma primavera instável. O tempo, perpetuamente em mudança, mandava nuvens azuis e púrpura por sobre a terra. No campo, os fazendeiros, olhando para a plantação, ficavam apreensivos. Em Londres, as pessoas olhavam para o céu, abrindo e logo fechando os guarda-chuvas. Em Abril, porém, um tempo assim era de esperar. Milhares de caixeiros de lojas diziam isso mesmo, ao entregarem embrulhos bem feitos a senhoras de vestido estampado do outro lado do balcão, no Whiteley’s ou nas Army and Navy Stores. Intermináveis procissões de fregueses no West End, de homens de negócios no East, marchavam pela rua, como caravanas sempre em movimento, ou era o que parecia aos que tinham algum motivo para se deter, digamos, afim de pôr uma carta no correio ou olhar uma vitrine em Piccadilly. A procissão de landaus, vitórias e fiacres era incessante, pois a estação acabava de começar. Nas ruas mais tranquilas, músicos ofereciam parcimoniosamente um fio de som dos seus frágeis e quase sempre melancólicos instrumentos, reproduzidos, ou parodiados, aqui e ali, no Hyde Parkcomo em St. James, pelo pipilar dos pardais e as súbitas explosões do amoroso, mas intermitente tordo. Os pombos nas praças agitavam-se nos ramos das árvores, deixando tombar um galhinho ou outro, entoando repetidamente o mesmo acalanto sempre interrompido. Os portões, em Marble Arch e Apsley House, ficavam bloqueados à tardinha por senhoras em vestidos multicores com anquinhas e por cavalheiros de fraque e bengala, com cravos na lapela. A princesa surgia e, à sua passagem, os chapéus saudavam. Nos porões das longas avenidas dos bairros residenciais, empregadas de touca e avental preparavam chá.
Ascendendo por tortuosos caminhos, o bule de prata era finalmente colocado em cima da mesa, e donzelas e solteironas com mãos que haviam pensado as feridas de Bermondsey e Hoxton mediam cuidadosamente uma, duas, três, quatro colheres de chá. Quando o sol se punha, um milhão de pequenas luzes de gás, com a forma dos olhos as penas do pavão, abriam-se nas suas gaiolas de vidro. Mesmo assim, restavam largas áreas de sombra nas calçadas. A claridade mista dos bicos de gás e do crepúsculo reflectia-se igualmente nas plácidas águas do Round Pond e da Serpentine. Gente que saíra para jantar fora trotando pela ponte em cabriolés, demorava os olhos por um momento na encantadora vista. Por fim, a lua aparecia, e a sua moeda polida, embora escondida de espaço em espaço por fiapos de nuvens, brilhava serenamente, com severidade ou talvez completa indiferença. Girando devagar, como os raios de um holofote, os dias, as semanas e os anos passavam um após outro, projectados contra o céu.
O coronel Abel Pargiter estava sentado à mesa no seu clube, conversando depois do almoço. E como os seus companheiros, nas suas poltronas de couro, eram homens da sua mesma espécie, que haviam sido soldados, funcionários públicos, homens já àquela altura aposentados, reviviam, com velhas pilhérias e casos, o seu passado na Índia, na África, no Egipto. Numa transição natural, voltavam-se depois para o presente. Tratava-se de uma nomeação, de alguma possível nomeação. De repente o mais jovem e mais lépido dos três curvou-se para a frente. Na véspera tinha almoçado com... Aí a voz do orador baixou. Os outros se curvaram para ele.Com um breve gesto da mão, o coronel Abel dispensou o garçom que retirava as xícaras do café. As três cabeças grisalhas em que a calvície avançava permaneceram juntas por alguns minutos. Então o coronel Abel recostou-se na sua cadeira. O curioso brilho que luzira nos olhos deles, todos, quando o major Elkin começara sua história, já se apagara completamente do rosto do coronel Pargiter. Olhava em frente, espremendo os olhos azuis muito brilhantes, como se o fulgor do Oriente ainda estivesse neles, e franzidos nos cantos, como se o pó do Oriente também tivesse ficado ali. Um pensamento qualquer lhe ocorrera, tornando sem interesse o que os outros estavam dizendo; era-lhe, aliás, desagradável. Ergueu-se e ficou a contemplar Piccadilly pela janela. Com o charuto parado no ar, olhava em baixo as cobertas de autocarros, fiacres, vitórias, carroções fechados, landaus. Estava longe daquilo tudo, era o que sua atitude sugeria. Já não tinha a mão naquela massa. E, à medida que contemplava, a tristeza tomava conta de seu rosto vermelho e simpático. De repente, veio-lhe uma ideia. Tinha algo a perguntar. Voltou-se para formulá-lo. Mas os seus amigos já não estavam ali. O pequeno grupo se desfizera. Elkins já se afastava às pressas, rumo à porta; Brand falava com outro homem. O coronel Pargiter fechou a boca que tinha aberto e engoliu o que estivera a ponto de dizer. Depois, virou-se outra vez para a janela que abria sobre Piccadilly. Todo mundo, na rua cheia de gente, parecia ter destino certo. Todos se apressavam para algum encontro marcado. Até as damas nas suas vitórias e berlindas trotavam celeremente Piccadilly abaixo, com algum propósito em mente. As pessoas regressavam a Londres. Instalavam-se para a estação. Para ele, contudo, não haveria estação. Só ele não tinha nada que fazer. A sua mulher estava à morte. Mas não morria. Hoje mesmo mostrara-se melhor. Pioraria amanhã. Uma nova enfermeira chegaria. E as coisas continuariam nesse ramerrão. Apanhou um jornal, folheou-o a esmo. Deu com uma foto do frontão oeste da catedral de Colónia. Pôs o jornal de volta no lugar, entre os demais jornais». ». In Virgínia Woolf, Os Anos, 1937, Relógio D'Água, 1992, ISBN-978-972-708-154-7.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT