segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O Bosque da Noite. Djuna Barnes. «Na Viena do tempo de Volkbein havia poucos negócios acolhedores para os judeus. Guido, no entanto, graças a diversas transacções de bens imobiliários, a discretas compras de quadros de antigos mestres…»

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Prosterna-te
«(…) O seu mais triste e fútil gesto consistira em procurar obter o título de barão. Tinha adoptado o sinal da cruz; tinha chegado a dizer-se austríaco de uma antiga linhagem quase extinta, exibindo em apoio da sua história as provas mais espantosas e descabidas: um brasão a que não tinha qualquer direito e uma lista de antepassados (incluindo os seus apelidos cristãos) que nunca haviam existido. Quando Hedvig o interrogara sobre os seus lenços negros e amarelos, afirmara que se destinavam a lembrar-lhe que um ramo da família florescera em Roma. Tentara formar com ela um único ser, adorando-a e imitando o seu andar de ganso, que nele se tornava deslocado e cómico. Ela teria feito outro tanto mas, sentindo nele qualquer coisa de blasfemo e solitário, aparou o golpe como se esperaria de um não-hebreu, aproximando-se dele na aversão. Acreditara em tudo o que ele lhe contara. Perguntava, no entanto, muitas vezes o que se passa?, perpétua critica que pretendia ser um perpétuo apelo para que a amasse, mas que ecoava na vida dele como uma voz acusadora. A braços com o seu tormento, chegara mesmo a celebrar as cabeças coroadas, lançando-lhes elogios com a violência de um jacto de água reforçado pela pressão de um polegar. E rira com todo o gosto quando se achara em presença de detentores de títulos inferiores, como se, por bondade natural, pudesse conceder-lhes qualquer distinção com que tivessem sonhado. Confrontado com nem mais nem menos do que um general vestido de couro rangente e com os movimentos ligeiramente percucientes comuns aos personagens militares, que parecem respirar de dentro para fora, cheirando a pólvora e a carne de cavalo, e que, apesar de letárgicos, estão prontos para participar numa guerra ainda indeterminada (um tipo de homens pelos quais Hedvig sentira muita inclinação), Guido fora sacudido por um tremor invisível. Reconhecia em Hedvig a mesma postura, o mesmo vigor, só que mais condensado, na mão feita num molde mais pequeno, tão sinistra na sua redução como uma casa de bonecas. A pluma no seu chapéu tinha a nitidez de uma faca e tremia como se fosse agitada por um vento heráldico; era um modelo oferecido à Natureza, uma mulher exacta, de seios opulentos, feliz. Olhando-os, Guido ficara perturbado, como se fosse sofrer uma reprimenda, não do oficial, mas de sua mulher.
Quando ela dançava, um pouco estonteada pelo vinho, o pavimento tornava-se um campo de manobras; os seus exercitados calcanhares golpeavam os tacos de madeira do chão; os ombros pareciam tão conscientes de si como os que exibem os galões e as borlas das patentes militares superiores; e a cabeça, voltada para o lado, mantinha a vigilância fria de uma sentinela cujas rondas não estão isentas de apreensão. E, no entanto, Hedvig fazia o melhor que podia. Se existe um chique maciço, ela personificava-o, mas não sem uma vaga inquietação. Se alguma coisa perseguira, sem mesmo disso ter consciência, fora a garantia que Guido lhe dera de ser barão. Acreditava nisso como um soldado, acredita, numa ordem.
Qualquer coisa no seu ser sensível, a que ela não teria concedido, por si, qualquer valor, lho tinha dito sem que pudessem ficar quaisquer dúvidas. Hedvig tornara-se baronesa sem discussão.
Na Viena do tempo de Volkbein havia poucos negócios acolhedores para os judeus. Guido, no entanto, graças a diversas transacções de bens imobiliários, a discretas compras de quadros de antigos mestres e primeiras edições, bem como a operações de câmbio, conseguira obter para Hedvig uma casa no centro da cidade, voltada a norte para o Prater, uma casa vasta, sombria e imponente que se tornou o museu fantástico do seu encontro. Os longos salões rococó, estonteantes de pelúcias e volutas douradas, estavam povoados de fragmentos romanos, brancos e desirmanados: uma perna de atleta, a glacial cabeça semi-voltada de uma matrona ferida no seio, cujas audaciosas órbitas cegas recebiam uma pupila das sombras fugidias, de tal modo que aquilo que olhavam dependia da acção do Sol. O grande salão era em nogueira. Sobre a chaminé estavam suspensos impressionantes exemplares dos brasões dos Médicis e, ao lado, a ave que simboliza a Áustria». In Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936, 1950, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-161-9.

Cortesia de Relógiod’águaE/JDACT