Prosterna-te
«(…) Três maciços pianos (Hedvig
tocara as valsas do seu tempo com a mestria de um homem, no movimento rápido e
acelerado do seu sangue, com a enérgica delicadeza de toque dos vienenses que, apesar
de aguilhoados pelo amor ao ritmo, satisfazem tal necessidade à maneira dos
duelistas) alongavam-se sobre a espessa amálgama sangue-de-dragão das
tapeçarias madrilenas. O escritório abrigava duas secretárias desconexas, de
uma preciosa madeira cor de sangue. Hedvig gostava de coisas aos pares ou em
trios. No meio arco que existia nas secretárias haviam sido pregadas tachas com
cabeças em prata, de modo a desenhar um leão, um urso, um carneiro, uma pomba
e, ao centro, uma tocha a arder. O desenho fora executado sob a supervisão de
Guido, que, cedendo a um impulso de momento, o reivindicou como brasão dos
Volkbein, apesar de se tratar de um motivo heráldico há muito declinante sob o severo
olhar papal. As janelas abertas até ao chão (um toque francês que Guido
considerava elegante) davam, através das cortinas de veludo nativo ou estofos
tunisinos, para o parque e as persianas tinham aquele tom de vermelho
particularmente sombrio de que os austríacos tanto gostam. Nos painéis de
carvalho, que se elevavam acima da longa mesa até ao tecto arqueado, estavam
suspensos os retratos em tamanho natural dos pretensos pai e mãe de Guido. A senhora
era uma majestosa florentina de olhos brilhantes e astuciosos e boca
peremptória. Compridas mangas com tufos e pérolas subiam quase até às eriçadas
pontas da renda engomada que lhe rodeavam a cabeça, cónica e entrançada. A
massa profunda das roupas caía à sua volta em arestas sombrias; a cauda do
vestido, que se perdia numa perspectiva de árvores primitivas, tinha a
espessura de um tapete. Parecia esperar uma ave. O cavalheiro estava
precariamente empoleirado num cavalo de batalha. Parecia menos montado no
cavalo do que prestes a baixar sobre ele. O azul de um céu italiano estendia-se
entre a sela e as nádegas do cavaleiro. O cavalo fora captado pelo pintor a
descrever a parte final de um arco, a crina erguida numa ondulação agonizante,
e a cauda apontada para a frente, por entre as finas pernas chanfradas. A sua
roupa era uma confusa mistura de romanesco e religioso, e na dobra do braço
esquerdo trazia um chapéu emplumado, com a copa voltada para fora. No conjunto,
a composição poderia ter sido um capricho de terça-feira de Carnaval. A cabeça
do cavalheiro colocada a três quartos oferecia uma notável semelhança com Guido
Volkbein, a mesma curva de nariz cabalístico e os mesmos traços curtidos e
ardentes, excepto no local em que o azul virginal dos olhos arqueava as
pálpebras como se um outro órgão que não o da visão estivesse situado sob
aquela carne. Não havia qualquer quebra na actividade desse olhar fixo,
infinito e objectivo. A semelhança era acidental. Se alguém se desse ao
trabalho de tirar as coisas a limpo, teria descoberto que estes quadros eram os
retratos de dois intrépidos actores antigos. Guido tinha-os encontrado num
qualquer recanto esquecido e poeirento e comprou-os quando se convenceu de que
iria necessitar de um álibi para o seu sangue.
Era neste ponto que a história exacta
parava para Felix que, trinta anos mais tarde, fizera a sua aparição no mundo
com estes factos, os dois retratos e nada mais. A sua tia, sem deixar de
pentear as longas tranças com um pente de âmbar, contou-lhe o que sabia, e era
tudo o que conhecia do passado de Felix. O modo como Felix crescera, desde o
nascimento até aos trinta anos, era por todos desconhecido, pois os passos do
judeu errante reproduzem-se em cada um dos filhos. Em qualquer local ou tempo
em que o encontremos, sentimos que vem de qualquer lado, pouco importa qual, de
um país que devorou mais do que habitou, de uma terra desconhecida que o
alimentou mas que ele não pôde receber como herança, pois o judeu em todo o
lado parece não ser de parte alguma. Quando se mencionava o nome de Felix, logo
três ou quatro pessoas juravam que o tinham visto simultaneamente, na semana
anterior, em três países diferentes». In Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936,
1950, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-161-9.
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