Cortesia
de wikipedia
«(…) O sobrinho
já é adulto. Penso que nem vive com ele. E não precisam de saber mais nada.
Onde anda a Madalena? Está na cozinha, disse a mãe. A ajudar a Lucinda a fazer
bolos para o chá. A cozinheira Felícia está ocupadíssima com a ceia. Depois do
almoço vou ajudá-la. Quero dar o meu toque pessoal ao caril de lulas e ao molho
do borrego. Aquele de que tu gostas, Firmino. O pai sorriu. E passou ali uma
ternura que, por qualquer razão, sossegou a inquietação de Margarida. O senhor
juiz desembargador Diogo António José Leite Pereira Castelo Novais Souza chegou
à Casa da Azenha pelas quatro horas da tarde, mesmo a tempo de apreciar o chá. Era
um senhor bem apessoado, estatura média, cabelos brancos, olhos azuis, que
passou toda a merenda, enquanto trincava com os dentes da frente (provavelmente
não tinha os de trás) os bolinhos da Madalena, a observar as três meninas.
Quando demorava
mais a olhar uma delas sorria muito a seguir, como que a amenizar aquela mirada
avaliadora. Margarida pensava que, se fosse escolhida, teria de invocar cem
anos de direitos adquiridos pelas mulheres e explicar que não se considerava
uma couve-flor exposta no supermercado (bom, na praça) para que a freguesa, neste
caso o freguês, a levasse na alcofa. Imaginava a reacção daquele pai
recém-adquirido que faria o que era costume fazer naquela época a qualquer
mulher que saísse da norma e estrita obediência ao poder paternal: fechá-la a
sete chaves no chamado asilo, onde amarrada à cama ou com banhos gelados e
outras torturas haviam de fazê-la voltar à razão. Percebeu que a ideia era o
juiz voltar mais vezes até tomar uma decisão. Com muita honestidade, a mãe
Maria da Glória ia explicando as características de cada uma delas: Madalena a
dona de casa, Mariana a maria-rapaz, Margarida a intelectual. Ficou, pois, a
saber que costumava fechar-se na biblioteca a ler livros autorizados pelo pai e
até os levava para o jardim ou para o quarto para ler na cama. Margarida ficou
convencida de que foi isto que a salvou do casamento com o juiz desembargador,
que escolheu Madalena, pois que marido iria querer uma sabichona, tendo à
disposição uma dona de casa de dezoito anos, linda e receptiva?
Descobriu também
que tinha vinte e dois anos, praticamente, para a época, uma velha solteirona,
e alegrou-se com a ideia de que talvez não casasse por ter passado da idade e
já não ser vendável a qualquer outro bom partido, se o houvesse, pois àquele
fim-de-mundo não chegavam facilmente candidatos.
O juiz
desembargador Diogo António José Leite Pereira Castelo Novais Souza ficou
alguns dias hospedado na Casa da Azenha, para conhecer melhor a noiva, que
parecia satisfeita por ter sido a escolhida e começou a ter ares superiores
para as irmãs, um tom de soberba nas ordens às criadas e uma atitude servil
perante o noivo, e que Margarida considerou deplorável mas, como não a conhecia
não se atreveu a dizer-lhe nada. E, de súbito, foi assaltada por um pensamento
terrível, devastador, e que era onde estaria a verdadeira Margarida, a que
viera substituir, a que fazia dela uma impostora, e desejou que não estivesse
em Lisboa a namoriscar o Pedro, a morrer de prazer nos braços do Miguel e a
preparar-se para dar aulas de Matemática. Encheu-se de ciúmes e preferiu pensar
que ela estaria no século dezoito, fechada num convento, a namorar pela grade
os irmãos das outras freiras. Mas não sabia. Não lhe cabia escolher. E este
desvio pelas esquinas do tempo, que escapava a qualquer lógica, colocava-lhe
problemas que toda a sua ciência não explicava.
Estranhavam-lhe
os silêncios e chegaram a pensar que estava amuada por, na sua qualidade de
primogénita, ter sido preterida pela irmã. Ela deixou que esta versão vingasse,
pois tinha medo de dizer qualquer inconveniência, falar, sem querer, de
neurões, enzimas, cêdês, telemóveis, televisão, ipod’s, ou simplesmente de
Fernando Pessoa, Saramago ou Jorge Luis Borges. Já que o tempo lhe pregava esta
partida, podia, ao menos, apagar-lhe da memória um século de ciência e de
evolução. Outras interrogações a assolavam como, por exemplo, se as pessoas que
consideramos geniais não serão apenas viajantes de tempos mais avançados que
sabem aquilo que ainda não sabemos!, então chegou Miguel, o sobrinho do noivo. Diogo
António José tinha avisado que Miguel, seu único parente, viria para conhecer a
noiva do tio. Era esperado em casa, mas ninguém, a não ser a mãe, na sua
qualidade de anfitriã, pensava muito nisso. Madalena estava deslumbrada com a
sua nova condição e ocupada com o enxoval. Levava os dias a bordar e a servir
petiscos ao noivo. Queria a todo o custo provar-lhe que ele fizera a escolha
certa. Mariana gostava de sair com o pai pela propriedade, supervisionar com
ele a vindima que estava em curso, montar a cavalo e conduzir a charrette. Não
ia ser fácil arranjar marido. Margarida divertia-se na biblioteca a descobrir
os livros autorizados pelo pai Firmino. Eram obras para meninas românticas, com
finais felizes, de autores desconhecidos, com nomes que pareciam pseudónimos, talvez
de mulheres. Foi na biblioteca que a mãe Maria da Glória a encontrou: Margarida!
Onde é que se meteu? Ah está aqui, pois claro. Venha tomar chá, temos uma
visita. Na sala azul, despache-se». In Rosa Lobato Faria, As Esquinas do Tempo,
Porto Editora, colecção Marca de Água, 2008, 2011, ISBN: 978-972-0-04181-4.
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