«(…)
Acho que não, Joana. Se calhar quero o meu filho, Deus tem-me dado tão pouca coisa,
se calhar ia levar a mal que eu desprezasse este presente, porque um filho é
uma bênção e parece que o meu corpo está a gostar desta novidade, sinto-me
alegre no intervalo dos enjoos, não sei, tenho de pensar melhor. Quando a Tiana
voltou já a Margarida tinha resolvido ter o filho, andava a esconder a barriga
para a dona Joaninha não dar por nada, o doutor Bento já se tinha fartado, era
como se não conhecesse a rapariga nem das escadas, a Tiana ainda tentou falar
com ele, mas o senhor doutor riu-se-lhe na cara, desde que o mundo é mundo que
os patrões fazem filhos às criadas, a culpa é delas que se põem de gatas a
limpar o chão, ou se debruçam a servir o café e mostram o rego dos peitos pelo
decote, vê lá se ela fez queixa à dona Joaninha, era o que mais faltava eu ter
que dar satisfações dos meus actos a uma serviçal.
Uma
noite em que houve jantar de cerimónia, dona Joana reparou que a farda de cetim
preto não servia à Margarida, não abotoava atrás o segundo botão, um peito que
era uma vergonha, Não estás a pensar servir à mesa nesse propósito, ou estás?
Estou mais gorda, a senhora desculpe, é do bom passadio cá de casa, eu em casa
pouco ou nada comia, já cá estás há três anos e agora é que o passadio te faz
efeito, eu acho é que o jardineiro te emprenhou, mas eu ponho os dois no olho
da rua. Credo, minha senhora, coitado do rapaz, não tem nada a ver comigo, eu
juro por tudo, estou mais gorda e pronto, se a senhora me quer despedir por eu
estar mais gorda, despeça-me, paciência, mas deixe em paz o Agostinho que não é
para aqui tido nem achado. Bom, vai lá pedir à Augusta que te mude os botões
que as visitas estão a chegar e depois agente fala.
Tiana,
senta aí um bocadichinho enquanto eu passajo estas meias pretas do senhor
doutor, que já as levas para a gaveta, meteu a Augusta o ovo no calcanhar da
meia. Aquilo ontem com as visitas foi até às tantas, não? Sim, deu para tarde,
dobrou a Tiana dois panos da loiça recém-remendados, pô-los no cesto, procurou
e encontrou uma toalha velha de mãos. Andava a ver desta toalhinha, não sabia
que estava aqui. Já não merece conserto, passou a linha de lado a lado do
buraco a Augusta. Com tanto dinheiro para que é que querem as coisas
remendadas, começou a cruzar a linha pelas outras já estendidas paralelamente
no ovo a Augusta. No poupar é que está o ganho, pegou numa agulha, procurou
linha azul, lambeu-a e apertou a ponta entre os dentes a Tiana, dá-me aí a
caixa dos botões. Toma lá, mexeu-se na cadeirinha baixa a Augusta, não escolhas
os de madrepérola, para as nossas batas são os de massa. Já sei, enfiou a linha
lambida no buraco da agulha, esticou-a pela ponta, rolou um pequeno nó,
procurou um dedal com o médio da mão direita a Tiana. Ando aqui com este botão
partido no punho, pregou a Tiana a agulha no peito do avental, cortou com a
tesourinha a linha já encerada de sabão e ferro do resto do botão velho.
Tu
já viste a barriga da Margarida?, desencontrou a linha preta perpendicularmente
entre os fios, um sim um não, agora ao contrário, um não um sim a Augusta. Barriga?
Está gordinha, isso sim, prendeu a linha azul na cicatriz do botão anterior a
Tiana. Pois, como se a gente não soubesse o patrão que tem, cortou com os
dentes a linha preta a Augusta. Vê lá se seguras essa língua, enfiou no buraco
do botão a agulha, para baixo, agora para cima, agora em cruz a Tiana. Ela
ontem veio aqui para eu lhe mudar os botões à bata preta de servir à mesa, tem
duas mamas que parecem dois melões e a barriga empina-lhe a saia, tive de lhe
baixar a bainha na frente, bateu com o dedal na passagem terminada, deliciou-se
com o ruidinho do metal na madeira do ovo a Augusta. Está prenha, que te digo
eu. Não te esqueças de ir contar à dona Joana, rematou, cortou a linha azul com
a tesourinha, experimentou a resistência do botão a Tiana. Conte-lhe ou não
conte, mais dia menos dia ela terá que saber, enrolou as meias pretas uma na
outra, deu-lhes a volta, fê-las numa bola, entregou-as à Tiana a Augusta.
Morres se não lhe deres a novidade, levantou-se, pegou nas meias enroladas,
bateu-lhes com a palma da mão para as achatar a Tiana. Valha-te Deus, Augusta,
meteu as meias no bolso do avental e foi-se da salinha da costura a Tiana.
Lanchei
tanto, Tiana, que não vou querer jantar. Vou para o meu quarto ler o livro do
Mário, não imaginas as coisas que ele aqui conta. O doutor Marinho, nunca houve
homem tão bom, que Deus o guarde na Sua santa glória. Lá para as nove, tenha
paciência, menina, mando-lhe a Júlia com um copinho de leite. Na sua estratégia
de dizer mal dos patrões às criadas e mal das criadas aos patrões, a Augusta
foi uma quinta-feira de empréstimo costurar aventais à dona Teresinha,
coscuvilhou tudo o que pôde, aquela rapariga dos quartos, veja lá a senhora, a
Margarida, está cheia como uma vaca. E o pai quem é? Vá lá a gente saber, são
umas malucas, mas consta, que eu, Deus me a mim livre apontar o dedo a alguém,
ninguém sabe o dia de amanhã. Consta o quê? Bom, dizem lá pela cozinha, não é,
que o doutor Bentinho pôs olhos na rapariga assim que ela para lá entrou. Meu
Deus! E a dona Joaninha sabe disso? Saber, o que se diz, saber, não sabe, mas
se calhar desconfia. É que já se nota muito, aquilo aparenta uns quatro ou
cinco meses, mais dia menos dia a mocinha vai ter que se explicar». In
Rosa Lobato de Faria, Os Pássaros de Seda, licença editorial por cortesia de
Asa Editores, Círculo de Leitores, 2002, ISBN 972-422-650-6.
Cortesia
de ASAE/CLeitores/JDACT